quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Manuel Bandeira em prosa, em crônicas

RECORDAÇÃO DE CAMUS

         De todos os grandes escritores europeus que nos visitaram, e eu tive a oportunidade de abordar, nenhum me impressionou tão agradavelmente como esse Albert Camus, que acaba de desaparecer num fortuito acidente de automóvel. Quando ele esteve aqui, ainda não era Prêmio Nobel, mas já havia escrito La peste e o seu nome se tornara conhecido em todo o mundo. A maior láurea literária não podia aumentar-lhe a celebridade, que já era imensa: era dos tais que fazem mais honra ao prêmio do que o prêmio a eles.
       Assim, ao se anunciar a sua conferência, a ser pronunciada no auditório do Ministério da Educação, a afluência do público foi enorme, e creio mesmo que só Anatole France despertou entre nós tamanha curiosidade. Até eu, que sou muito avesso a esses corre-corres, a esse espevitamento de tomar o cheiro dos famanazes em trânsito, saí-me dos meus cuidados e fui até o Ministério. Mas, diante do aspecto da sala, absolutamente à cunha, com grande sentada até junto à mesa, bati em retirada. A consequência foi que nunca vi Camus falar em público. 
       Vi, porém, coisa melhor. Conversei com ele em tête-à-tête, e eis como tive essa fortuna, que devo a Maria da Saudade Cortesão. Alguns amigos brasileiros do grande escritor, uns vinte, entre os quais Murilo Mendes, tiveram a boa ideia de lhe oferecer um almoço de despedida num restaurante português da rua do Ouvidor, perto do cais. Ao fim do almoço, eu, que apenas havia apertado a mão de Camus ao lhe ser apresentado, sentia-me bastante derreado pela peixada e pelo verde da casa: mal podia trocar palavra com os meus vizinhos de mesa. Foi quando Maria da Saudade, que ocupara o lugar à direita do escritor, levantou-se e veio buscar-me para me fazer sentar ao lado de Camus, a fim de que ele e eu conversássemos um pouco. Obedeci com certa relutância, pois não esperava grande coisa do contato (a minha experiência com Spender, Lehmann e outros sublimes fora desanimadora). Que dizer de saída a Camus? Eu estava arrasado. Foi o que disse: "Esses almoços em restaurante me cansam muito." A simpatia de Camus foi total. - "A mim também", respondeu. E eu prossegui: - "O senhor deve estar exausto de tanta conferência, tanta homenagem." E ele: - "Estou doente. Eu resisti à guerra, resisti à Resistência, não resisti à América do Sul!" Por aí fomos num papo sem nenhuma formalidade, falamos de nossa doença (porque Camus também foi marcado pela tuberculose na mocidade), falamos de muitas outras coisas e ele acabou dando-me o seu telefone privado em Paris para que eu o procurasse quando fosse à França. Durante todo o tempo que o ouvi, senti-me à vontade e encantado. Surpreso. Não havia naquele homem vestígio dessa personagem odiosa que é a celebridade itinerante. Não parecia um homem de letras. Era um homem da rua, um simples homem, dando a outro homem um pouco da sua substância espiritual, simplesmente humana. Senti vontade de ser seu amigo. Quando, um ano depois, estive em Paris, quis procurá-lo. Ele estava ausente. Agora o desastre... Deixo nessas pobres linhas a minha saudade do homem Camus, tão simples, tão simpático, tão despretensioso na sua glória mundial. [10. I. 1960].

In: Andorinha, Andorinha, p. 745.

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POEMA DESENTRANHADO

       O poeta é um abstrator de quinta-essências líricas. É um sujeito que sabe desentranhar a poesia que há escondida nas coisas, nas palavras, nos gritos, nos sonhos. A poesia que há em tudo, porque a poesia é o éter em que tudo mergulha, e que tudo penetra. 
     O poeta muitas vezes se delicia em criar poesia, não tirando-a de si, dos seus sentimentos, dos seus sonhos, das suas experiências, mas "desgangarizando-a" como disse Couto de Barros, dos minérios em que ela jaz sepultada: uma notícia de jornal, uma frase ouvida num bonde ou lida numa receita de doce ou numa fórmula de toilette.
       Há quem censure o poeta por isso. Não me parece avisada tal atitude: a poesia é como o rádium - o milésimo de miligrama constitui uma riqueza que não se deve deixar perder.
      Eu, por mim, vivo cada vez mais atento a essa poesia disfarçada e errante. E um dos exercícios que mais me encantam é desentranhar um poema que está não raro desmembrado, desmanchado numa página de prosa.
       Como sou advertido da presença do poema? Acho que é quase sempre por uma imagem insólita ou por um encontro encantatório de vocábulos.
      Vou dar um exemplo. Há pouco tempo o poeta Augusto Frederico Schmidt escreveu sobre outro poeta uma página e meia de excelente prosa. No meio do escrito aparecia uma imagem de extraordinária beleza. Para achá-la era preciso ter, como Schmidt tem, uma extrema agudeza de sensibilidade para apreender a poesia mais fora do alcance do comum. Todo o mundo sente a poesia formidável de uma noite de luar. Mas sentir a serenidade "com que o céu escuro recebe a companhia das primeiras estrelas", isso é que fia mais fino. Não é que muita gente já não tenha sentido isso. Deve ter sentido, porém, tão vagamente, ou sentiu qualquer coisa que não soube bem que era isso, eu sei lá. Em todo o caso, creio que até hoje, desde que o mundo é mundo, ninguém exprimiu tal sentimento.
        A imagem me pôs alerta. O meu instinto de "desgangarizador" estava acordado. - Aqui deve haver poema, disse eu comigo. Fiz então o que Tolstoi costumava fazer com a prosa dos evangelistas: ele sublinhava a traço vermelho o que nela lhe parecia sem sombra de dúvida marcado com o selo divino do Cristo. Voltei a reler a prosa de Schmidt, procurando nela a parte de Deus. 
     A experiência deu resultado. O poema apareceu como o precipitado de uma reação química. 
       Risquei a lápis vermelho: na segunda linha "É uma luz triste mas pura", etc.; no começo do quarto período "A solidão é em F. o grande sinal de seu destino"; seis linhas adiante "Da poesia feita como quem ama e quem morre, caminhou ele para uma poesia de quem vive e recebe a tristeza naturalmente como o céu escuro recebe a companhia das primeiras estrelas"; no meio do período seguinte "O pitoresco, as cores vivas, o mistério e o calor dos outros seres o interessam realmente, mas ele está apartado de tudo isso, porque F. vive na companhia de seus desaparecidos, dos que brincaram e cantaram um dia à luz das fogueiras e estão, no entanto, dormindo profundamente".
       Com a transposição da imagem das estrelas e uma ou outra insignificante alteração ou acréscimo de palavra, ficou assim recomposto o poema de Schmidt:

PALAVRA A UM POETA

A luz da tua poesia é triste mas pura.
A solidão é o grande sinal do teu destino.
O pitoresco, as cores vivas, o mistério e calor dos outros seres te interessam realmente
Mas tu estás apartado de tudo isso, porque vives na companhia dos teus desaparecidos.
Dos que brincaram e cantaram um dia à luz das fogueiras de São João.
E hoje estão para sempre dormindo profundamente.
Da poesia feita como quem ama e quem morre
Caminhaste para uma poesia de quem vive e recebe a tristeza
Naturalmente
- Como o céu escuro recebe a companhia das primeiras estrelas.

In: Flauta de papel, p. 764-765. 

BANDEIRA, Manuel. Manuel Bandeira: poesia completa e prosa. Volume único. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009.

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