quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Xavier

ou
De sombra em sombra

A origem remota do nome Xavier está no basco Etchaberri, que significa "casa nova". No Brasil, entretanto, pode designar pejorativamente uma pessoa "sem graça, desenxabida e encalistrada". Certos homens que têm esse nome pensam que o que nada pesa não vale a pena. Outros afirmam que é necessário não ver nas coisas mais do que estas carregam. Já um filósofo do século XII, autor de Sobre a vida contemplativa, escreveu que quem se chama Xavier vive sempre onde não está, diz quase sempre a verdade e mente apenas quando não quer que saibam a verdade sobre seus segredos.


1. 

Quando José Fernandes - vulgo Jafé - encontrou Xavier num beco revirando o lixo, deu-lhe o último biscoito de polvilho que restava de seu próprio lanche do dia. O cão olhou-o com uma expressão entre lânguida e agradecida, como se experimentasse naquela hora seu primeiro contato com o afeto humano. Jafé, por dentro, pareceu dizer-lhe, à feição de um poeta para ambos desconhecido: me leva contigo, cachorro, e de nossas duas misérias talvez possamos extrair uma dose, ainda que mínima, de consolo. Sabe-se que para Jafé a tristeza era quase um vício, tal o apego que tinha à dor de existir, à vida ríspida. Ele e Xavier encontraram-se, assim, como dois errantes prontos para qualquer acaso, fortuna ou perigo. A partir de então, passaram a compartir uma cumplicidade sem limites. Jafé, que trabalhava como carregador de sacas de farinha, acabou por levar o animal para casa, onde vivia com Maria Alice e os três filhos. A princípio, sua mulher implicou com cão, por achar que ele ia consumir boa parte do salário da família. Mas os meninos o quiseram, e com isso valeu a decisão da maioria. Por fim, a mulher se afeiçoou ao vira-lata, sobretudo porque ele lhe afagava os pés sem pedir nada em troca.

2. 

Xavier nasceu numa ninhada de cinco filhotes, num terreno baldio do bairro do Rosário. Branco, com manchas pretas nas orelhas, tinha olhos grandes e meigos. Desde pequeno teve medo de vento. Seus irmãos morreram todos antes de completarem dois meses, e a mãe o abandonou num dia de maio, sem mais nem menos. Desprovido de nome e endereço, passou a perambular pelas ruas à cata de comida e abrigo. Ficava à espreita dos restos de algum restaurante ou açougue. Não era um cachorro grande, tampouco era pequeno para ser colocado no colo, nem tão magro quanto se espera de um animal sempre com fome. Uma de suas qualidades era o despudor de se deleitar com os detritos. Sabia também dissimular as próprias dores e nunca parecia pedir desculpas aos passantes, às árvores e aos bêbados por existir assim, tão indigente. Xavier tinha, ademais, a força da ideia fixa e ares de quem sabia que mais cedo ou mais tarde encontraria alguém que o adotasse como amigo. E foi o que aconteceu naquela segunda-feira sem brilho, quando Jafé apareceu para salvá-lo - ainda que provisoriamente - das ruínas.

3.

Xavier era desses cachorros que, quando ladram, mordem com os olhos, sem ser agressivos. Seu nome foi uma homenagem de Jafé a um primo de Maria Alice, morto de meningite aos três anos de idade, que recebera o nome em tributo a Chico Xavier, considerado o "santo espírita". Xavier acompanhava o dono em todas as andanças e não se descuidava da casa, atento a qualquer ruído. Parecia entender os conflitos de todos da família. Ele só falta falar - repetia Jafé quando percebia no cão um olhar pedinte. Às vezes Xavier fugia de casa e passava dois ou três dias sumido. Os meninos saíam à sua procura e quase sempre o flagravam em encontros de amor com alguma cadela nos quintais vizinhos. Mesmo com parcas porções de comida, ele demonstrava alegria. Corria com movimentos que por vezes lembravam os saltos de um tigre. As enfermidades dele se reduziam a eventuais diarreias e falta de apetite, o que era resolvido graças ao talento de Maria Alice no improviso de remédios. Um dia Xavier apareceu com uma ferida na perna, a qual lambia quase o dia inteiro. Não acharam nenhuma pomada que pusesse termo àquilo. Ele acabou ficando manco depois que um farmacêutico - condoído de seu estado - amputou-lhe a parte enferma da perna. Ainda assim, o cachorro não se rendeu à tristeza.

4.

Quando Jafé começou a se deprimir sem motivo claro, Xavier foi o primeiro a se preocupar com o que poderia advir disso. Passou a observar o dono em seus mínimos silêncios, como se conseguisse ler seus pensamentos mais secretos. Xavier parecia saber que Jafé estava irremediavelmente perdido e que não retornaria mais à normalidade do cotidiano. Ao contrário de Maria Alice, para quem o marido estava numa boa fase, por ele ter recebido aumento de salário e deixado de trabalhar aos sábados. Mas o fato é que Jafé dava a impressão de ter sido tomado por um mal súbito e se resignado, de vez, a um mudo desencanto. Xavier tentou por muitas vias reverter o estado do dono: fazia-lhe festa, lambia seu rosto, aconchegava-se a ele na cama. Quando viu Jafé com uma corda nas mãos, dirigindo-se para a sala em passos lentos, sentiu um frio na alma. Correu até o dono, mordeu-lhe as calças e ganiu como nunca fizera antes. Jafé virou-se para ele e disse: se afasta de mim, Xavier, porque não quero que minha violência te contamine. Tentou afugentar o cão com um rodo, mas acabou por se voltar para ele, acariciar-lhe o pêlo e pedir perdão pelo que faria. O que se sucedeu a isso já foi contado na história de Maria Alice: Jafé enforcado e Xavier uivando em aflição, como se tivesse sido ele, involuntariamente, o assassino.


MACIEL, Maria Esther. O livro dos nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 150-156.

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