Franz Xaver Wintheralter (1805-1873), 'scene of Decameron'. Oil on canvas, 1837. |
Neste ano de 2013 completam-se 700 anos do nascimento de Giovanni Boccaccio - nascido em 1313 e falecido em 1375.
Em função dessa data marcante, estão acontecendo muitas celebrações para aquele que alguns defendem ser o pai da narrativa moderna. Uma das mais importantes, sem dúvidas, é a iniciativa da editora L&PM. A editora está lançando em setembro próximo, o Decameron, a obra maior de Boccaccio, traduzido integralmente, direto do italiano, pela renomada Ivone Benedetti, e introduzido pelo professor Carlos Berriel.
Em uma palestra no evento 700 anos de Giovanni Boccaccio: entre latim e vernáculo, realizado na Unicamp nos dias 14 e 15 de agosto, Ivone nos lembrou que a última edição integral do Decameron saiu na década de 1970, com a rubrica de Torrieri Guimarães - que, no entanto, a tradutora defende, é uma versão maquiada da primeira tradução da obra, feita em meados do século passado por Raul de Polillo. Depois disso, houve apenas publicações de alguma ou outra novela do conjunto das 100 que compõem a totalidade da obra. Assim, somente agora, após muitas décadas, os leitores brasileiros terão a oportunidade de uma tradução integral novamente.
No livreto que circulou no evento da Unicamp, com a tradução da "Primeira Jornada" de Decameron, há a informação de que o livro conterá 632 páginas, custará 74 reais e estará nas livrarias no próximo mês, setembro. É aguardar!
Afora a valiosa iniciativa da editora, e a já evidente excelência da tradução de Benedetti (que pôde ser antevista, em parte, no livreto), a tradutora proferiu uma importante palestra no evento de celebração dos 700 anos do nascimento do escritor, contando sobre o desafio de traduzir o Decameron. Ivone analisou e discutiu a tarefa do tradutor, seus desafios diante das requisições do mercado e as exigências das editoras - conforme a visão que têm do público leitor brasileiro -, com boas abordagens desses problemas, os quais, para os tradutores, já são hoje corriqueiros; além de também, discutir vários outros assuntos de importância para leitores e tradutores. Felizmente, a importante fala da escritora ganhou versão escrita e publicada em seu blogue pessoal, e é possível disponibilizá-la também pelo Brumas. Assim, reproduzo-a abaixo, direto de A Grenha, blogue de Ivone Benedetti.
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Tradução do Decameron: tônus e público
Por Ivone Benedetti
Em uma palestra no evento 700 anos de Giovanni Boccaccio: entre latim e vernáculo, realizado na Unicamp nos dias 14 e 15 de agosto, Ivone nos lembrou que a última edição integral do Decameron saiu na década de 1970, com a rubrica de Torrieri Guimarães - que, no entanto, a tradutora defende, é uma versão maquiada da primeira tradução da obra, feita em meados do século passado por Raul de Polillo. Depois disso, houve apenas publicações de alguma ou outra novela do conjunto das 100 que compõem a totalidade da obra. Assim, somente agora, após muitas décadas, os leitores brasileiros terão a oportunidade de uma tradução integral novamente.
No livreto que circulou no evento da Unicamp, com a tradução da "Primeira Jornada" de Decameron, há a informação de que o livro conterá 632 páginas, custará 74 reais e estará nas livrarias no próximo mês, setembro. É aguardar!
Afora a valiosa iniciativa da editora, e a já evidente excelência da tradução de Benedetti (que pôde ser antevista, em parte, no livreto), a tradutora proferiu uma importante palestra no evento de celebração dos 700 anos do nascimento do escritor, contando sobre o desafio de traduzir o Decameron. Ivone analisou e discutiu a tarefa do tradutor, seus desafios diante das requisições do mercado e as exigências das editoras - conforme a visão que têm do público leitor brasileiro -, com boas abordagens desses problemas, os quais, para os tradutores, já são hoje corriqueiros; além de também, discutir vários outros assuntos de importância para leitores e tradutores. Felizmente, a importante fala da escritora ganhou versão escrita e publicada em seu blogue pessoal, e é possível disponibilizá-la também pelo Brumas. Assim, reproduzo-a abaixo, direto de A Grenha, blogue de Ivone Benedetti.
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Tradução do Decameron: tônus e público
Por Ivone Benedetti
Quando a L&PM, através de sua editora Caroline
Chang, me sugeriu a tradução do Decameron, aceitei com entusiasmo, por
perceber a pertinência da iniciativa. Ao contrário do que acontece com muitas
obras que já caíram em domínio público — verdadeiros best-sellers sem direitos
autorais —, das quais é possível encontrar várias traduções concomitantes e
inexplicáveis no mercado, o Decameron completo não contava com
nenhuma recente tradução para o português do Brasil. Convido quem quiser
conhecer um levantamento das diversas edições da obra durante o século XX no
Brasil a visitar o site "não gosto de plágio", de Denise Bottmann. Farei aqui um breve
resumo do levantamento que lá está para dar uma ideia da importância da
iniciativa. A primeira tradução brasileira completa de que se têm rastros é
assinada por Raul de Polillo e data de meados do século passado. A segunda
edição integral data de 1970 e é assinada por Torrieri Guimarães. No entanto,
conforme pôde ser constatado, em artigo da revista Língua Portuguesa, pelo
Prof. Gabriel Perissé e confirmado por Denise e por mim, trata-se da mesma
tradução de Polillo, maquiada por algum copidesque. Portanto, salvo engano,
tudo indica que no Brasil apenas um tradutor se dedicou à tradução integral
dessa obra, antes da iniciativa da L&PM, e esse tradutor se chama Raul de
Polillo. Antes e depois desse trabalho e até os dias de hoje, foram lançadas
várias traduções de novelas avulsas, em coletâneas ou não, por várias editoras,
algumas assinadas por nomes ilustres. Por que essa carência da tradução
completa? A primeira resposta que me vem à mente é o extremo esforço necessário
à empreitada, tanto por parte da editora quanto do tradutor. Trata-se de uma
obra extensa, que demanda muito tempo de trabalho, portanto grande empenho
individual de quem traduz e gastos consideráveis com os quais só uma grande
editora pode arcar. Em segundo lugar, é uma obra escrita num estado do italiano
pouco dominado pela maioria dos tradutores em atividade no mercado brasileiro.
Em terceiro lugar, no Brasil, com as contínuas republicações da pseudotradução
de Torrieri Guimarães, o mercado tinha a impressão de estar suficientemente
“abastecido” de Decameron. Eu mesma na juventude o li numa edição
de 1971 da Abril Cultural. Em quarto lugar, a “seleção” das novelas mais
agradáveis, digeríveis ou atraentes, segundo critérios de mercado, parecia
satisfazer a curiosidade dos leitores e os interesses das editoras. Com isso
nos acomodamos.
No entanto, ao nos satisfazermos com essa prática
fragmentária, esquecemos que o Decameron é uma obra unitária,
sustentada por uma moldura, que em si já merece consideração, conforme bem
mostra Vittore Branca em sua obra fundamental, Boccaccio medievale.
Essa segmentação inevitavelmente contribui para a criação de um conceito
parcial, portanto em grande parte falso, sobre o autor e sua obra, conceito que
foi capaz de alimentar o público leitor por décadas a fio.
Logo após o entusiasmo provocado pela proposta da
editora, nasceu em mim a preocupação com o tipo de público a que minha tradução
se dirigiria. No meu trabalho com algumas editoras (entre as quais não se
inclui a L&PM), tenho observado de maneira mais ou menos generalizada a
existência de um preconceito que atribui certas peculiaridades ao público
brasileiro. Na verdade, parece ser um tipo de atitude que vigora em todas as
mídias, talvez ensinada nas escolas de jornalismo – e aqui estou fazendo
ilações –, que seria representada mais ou menos pela seguinte frase: o público
brasileiro é inculto, é preciso evitar afugentá-lo com palavras ou construções difíceis. Esse mito (que realimenta dialeticamente uma eventual incultura) já
criou diversos embaraços para mim: em algumas ocasiões precisei enfrentar preparadores
de textos que sistematicamente substituíam palavras menos usuais, embora de
tradução correta e precisa, por coisas vagamente assemelhadas, pertencentes
muitas vezes a um arrevesado espectro de sinonímia, esquecidos tais
preparadores de que quem se dá o trabalho de comprar um livro já pertence a um
estrato predisposto a enfrentar o desconhecido e por alguma razão é estimulado
a aprender coisas novas. Felizmente não é esse o perfil da L&PM. Digo
felizmente porque o enfrentamento de uma obra desse tipo exige do tradutor,
segundo o meu conceito de tradução, a coragem de oferecer certo estranhamento
ao leitor. Um estranhamento com o qual, paradoxalmente, o leitor seja capaz de
se familiarizar, ou seja: mesmo criando algo deglutível em obediência às injunções
do mercado, traduzir de modo que, obedecendo a critérios estritos de teoria da
tradução, se ofereça à particularidade brasileira do século XXI um núcleo
irredutível daquele Boccaccio que atravessou séculos e nos chegou através de
seus inúmeros avatares. Em outras palavras, seria preciso extrair de Boccaccio
seus traços pertinentes[1] e oferecer ao leitor um texto que fosse
irredutivelmente Boccaccio, já não o sendo em sua forma originária.
E a pergunta nesses casos é a de sempre: que
entrelugar criar, para que o universo trecentista italiano não deixe de ser ele
mesmo, ainda que transposto para o universo brasileiro de nossos dias?
Como trocar esse paradoxo em miúdos? Todos sabemos
que o Decameron foi extensamente divulgado e lido na Itália
desde sua publicação. Conscientemente ou não, Boccaccio escreveu para um
público que não o desmentiu. Porque ele não o renegou: como esclarece Vittore
Branca, ele era lido pela burguesia endinheirada que fazia a glória financeira
de Florença e das outras cidades italianas por toda a Europa, era lido pela
casta dos mercatanti, dos mercadores. Boccaccio soube valer-se da
língua que já alcançara maturidade suficiente e criou com ela um sistema
narrativo que constitui uma verdadeira arquitetura de falares. A perenidade
dessa obra é resultado disso, da comunhão perfeita entre um escritor e um
público. Coisa nada pacífica em nossos dias, aliás desde o fim do século XIX,
quando o artista renegou sua classe de origem, a burguesia, e se exilou na
torre de marfim, deixando campo livre para os mercenários. E, diante de um
artista que comungou com um público e foi por ele acolhido, abstraindo agora as
questões atuais de mercado, não parece coerente fazer uma tradução que se negue
ao público leitor em virtude de, por exemplo, sua ilegibilidade. O ideal seria
fazer uma tradução que esse púbico degustasse com a mesma satisfação com que o
público original de Boccaccio o degustava. Questão de coerência, a meu ver. E,
se ele fez rir o público florentino do século XIV, seria muito interessante
também fazer rir o público brasileiro do século XXI. Se fez chorar, idem. Etc.
E aqui, divagando um pouco, ocorre-me a lúcida tese de Auerbach, defendida em Linguagem
literária e seu público no fim da antiguidade latina e na Idade Média[2], que consiste no seguinte: uma produção literária em
língua vulgar, de cunho semelhante ao que vicejara na Antiguidade, só foi
possível quando surgiram classes instruídas capazes de fomentá-la. Boccaccio
parece ter encontrado esse ambiente preparado. Sua obra, portanto, foi
comunicada. Estabeleceu-se assim o diálogo, a dualidade que constitui a
condição de fruição da obra literária. Assim, pondo de lado o falso dilema que
estabelece uma oposição entre a ida do leitor ao autor e a vinda do autor ao
leitor, sempre foi líquido e certo, para mim, que é preciso estabelecer, entre
a visão do presente e a do passado, aquilo que em hermenêutica se chama de
fusão de horizontes, encontrando-se o horizonte mais adequado de indagação para
as questões suscitadas pelo encontro com a tradição, ou seja, encontro do
presente do leitor com o passado do escritor. Dentro da práxis e de seus
ditames é sempre preciso encontrar alguma forma de estabelecer o encontro entre
esses dois polos, pois sem leitor todo autor é inócuo, porém o leitor sempre
precisa estar disposto ou ser guiado a dar alguns passos em direção ao autor.
Mas quem será esse leitor? Claro está que não há resposta óbvia. O tradutor,
assim como o escritor, em sua atividade sempre tem em mente um leitor médio
ideal, que pode ou não corresponder à média da assimilação dos leitores reais.
Para o editor, por sua vez, que desembolsa o preço de uma
tradução-edição-impressão-distribuição, o melhor é que o número de leitores
capazes de degustar e deglutir a obra seja o maior possível. Esse imperativo
ditado pela práxis evidentemente colide com o outro, de trazer ao leitor o
Boccaccio mais Boccaccio possível, e é no núcleo dessa tensão que se encontra o
tradutor. Mas, assim como dessa tensão nascem os problemas, dela surgem as soluções.
Há, pois, uma injunção da práxis que deve ser observada por todo tradutor que
atue no mercado, ou melhor, o tradutor prático, aquele que é obrigado a operar
diariamente o devido ajuste entre seu fazer e o saber teórico angariado,
atuando o tempo todo dentro de um equilíbrio instável que, terminada a
tradução, só se revela aos olhares mais percucientes. Essa injunção é:
instaurar uma relação dual obra-leitor, para que a existência da obra se
justifique pela satisfação intelectual ou artística do leitor. Se Boccaccio
teve seu público, e teve, de que modo pode ser justificado qualquer trabalho de
tradução que alije um público em nome de conceitos mal digeridos de fidelidade
ao autor? Por outro lado, embora seja necessário oferecer a possibilidade de ler
Boccaccio, como honestamente oferecer ao leitor algo que não seja Boccaccio?
É sempre assim que se configura a perplexidade de
um tradutor que tenha em mãos um texto construído segundo elementos
radicalmente estranhos à cultura que se convenciona chamar “de chegada”.
A meu ver, para equacionar esse problema é preciso
levantar alguns dados de historicidade e conhecer os traços pertinentes da
obra, ou seja, aqueles que não podem ser escamoteados sem que o autor se
descaracterize como tal. Esse levantamento corresponde a uma análise literária
e abrange no mínimo os aspectos cultural, lexical, sintático e retórico.
Os dados culturais presentes em qualquer obra
ficcional, que se manifestam através de sua trama, por meio da expressão de
usos, costumes, juízos e valores, constituem a contribuição mais rica que a
tradução pode dar aos leitores para o conhecimento de outros horizontes. Foi
sempre a tradução uma fonte riquíssima desse tipo de saber. Não tratarei aqui
desse aspecto, essencial, cujas soluções não me parecem problemáticas, salvo
casos esparsos.
O segundo aspecto mencionado, lexical ou
terminológico, em Boccaccio — como de resto em qualquer autor que tenha escrito
num estado de língua muito diferente do atual –, constitui um problema de
grande relevância, porque muitas das palavras usadas, embora formalmente
reconhecíveis como ainda existentes no léxico italiano, nem sempre portam em si
os significados que têm agora. Lidar com textos desse tipo requer razoáveis
conhecimentos de etimologia e gramática histórica. A desatenção a esse dado
pode ser fonte de grandes equívocos, pois o contexto, que em geral alerta para
a inadequação de algum sentido, pode deixar de ser percebido ou ser
suficientemente ambíguo para induzir em erro. Mesmo assim, nesse nível não se encontram
a meu ver as maiores dificuldades para o equacionamento da transferência de
traços pertinentes, desde que o tradutor seja competente. Nesse caso, tem-se aí
apenas uma questão de foco semântico. O maior problema, em minha opinião,
reside nos dois últimos aspectos.
Com efeito, um texto problemático do ponto de vista
da diacronia semântica, depois de devidamente traduzido, poderá deixar poucos
indícios de traços identificadores de uma época ou de um autor, desde que os
hábitos sintáticos do estado da língua em que ele escreve sejam semelhantes aos
atuais. Tomo como exemplo Voltaire. Uma parte dos vocábulos usados no século
XVIII por Voltaire, embora ainda pertencentes à língua francesa em seu estado
atual, mudaram de significado, mas a sintaxe voltairiana, mesmo que não
idêntica à atual sintaxe francesa, é fundamentalmente semelhante. Isso
significa que ela não causará perplexidade. O tradutor não precisará definir
uma tática especial para lidar com ela. Em Boccaccio a questão é bem diferente.
A estrutura sintática observada por ele, estrutura clássica, latinizante, se
mantida num texto escrito em português atual, produzirá uma leitura impossível.
Pois bem, então é preciso modificá-la. Até que ponto fazê-lo, sem desfigurar a
fisionomia de uma cultura, sem abolir a pátina do tempo, segundo a feliz
expressão de Paulo Rónai? Aí está o núcleo do dilema do tradutor. Sua escrita
caracteriza-se pelo chamado período tenso (sobretudo nas partes
argumentativas), que é essencialmente protático, ou seja, a enunciação da
primeira parte, chamada de prótase, vai preparando lentamente a enunciação da
parte final, chamada apódose. A prótase, formada por uma sucessão de orações
subordinadas, cria um suspense, sabendo o leitor que só chegando ao final do
período conhecerá o núcleo de seu significado. Costumo fazer uma analogia entre
essa construção e a série de acordes de uma cadência tonal, a preparar a tônica
que deverá instaurar o repouso final. Essa analogia não me parece descabida,
mas seria presunçoso e temerário tentar desenvolvê-la agora. A destruição de um
encadeamento tenso desse tipo costuma produzir como resultado um texto de tônus
bem diferente: se o núcleo de significado aparecer antes de tudo, fala-se em
período frouxo[3]. Nossa civilização não está acostumada a tais “cadências
protáticas longas”. Somos a civilização da asserção direta, da exposição
imediata do significado principal, ou, quando não, em havendo necessidade de
alguma preparação, espera-se que esta seja curta e inevitável. No entanto, se é
possível adivinhar preferências e intenções até mesmo em frases simples
enunciadas de modo diferente, como “se você vier jantaremos” ou “jantaremos se
você vier”, que dizer de sequências complexas, feitas sob medida para o
enunciado de alusões e pressupostos? Portanto, como preservar essas nuances sem
destruir uma marca registrada, sem transformar a clássica prosa de Boccaccio
num enunciado pragmático, de feição a transmitir informações rápidas, nos
moldes da nossa civilização apressada, que tem por secundário e acessório
aquilo a que antes se dava preeminência? Observe-se a organicidade de um
período, como por exemplo este, do proêmio:
Mas, como quis Aquele que, sendo infinito, ditou a
lei imutável de que todas as coisas do mundo devem ter fim, meu amor, que era
mais fervoroso que qualquer outro e não pudera ser destruído nem vergado por
nenhuma força de vontade, sensatez, vergonha evidente ou perigo que dele
pudesse decorrer, com o passar do tempo diminuiu sozinho, a tal ponto que em
minha mente deixou de si apenas o prazer que de hábito ele concede a quem não
tenha navegado por seus mais tenebrosos pélagos.
De que outro modo percorrer os meandros
representados por pressupostos, conclusões e consequências, sem destruir todo
um arcabouço hierarquizado de topoi, que se encontra por trás desse
enunciado?
Pois bem, o Boccaccio que escrevia para a casta dos mercatanti do
fim da Idade Média era um conhecedor das normas da escrita clássica. Escrevia
em vulgar com sintaxe clássica. Perfeita relação dialética, como, aliás, ocorre
com a sintaxe de toda a boa prosa toscana ao longo daqueles séculos gloriosos.
Ferir esse tipo de encadeamento, a meu ver, é destruir seu tônus,
enfraquecê-lo. No entanto — cabe complementar, retomando ideia a que já aludi
acima —, a estrita e cega observância da sequência de causais, finais,
consecutivas, condicionais e comparativas, em suas formas desenvolvidas ou
reduzidas, a caminharem pachorrentamente para a solução final, pode produzir um
labirinto conceitual no qual o leitor moderno se perderia com facilidade,
gerando um tédio mortal. Isso sem falar dos frequentes anacolutos. É preciso
ter liberdade de escolher os caminhos, mas uma liberdade guiada. Hoje, nossa
prosa, brasileira, costuma ser acusada de anomia, de falta de critérios coesos para
construções e usos. Pode ser verdade. No entanto, o que há de positivo nisso é
a maleabilidade que facilita traduzir os traços idissioncrásicos de culturas
longínquas no tempo ou no espaço, sem a coerção de observar normas rígidas
ditadas por critérios mais ou menos subjetivos, como por exemplo a elegância.
Essa característica, que marca a forma de escrever hoje, também marca a de
traduzir, numa evolução ocorrida desde o início do século XX, com resultados
que também oferecem ensejo para sérias críticas, mas esse é um assunto que
demandaria demoradas reflexões e análises, que não cabem aqui.
Depois de abordar o tônus sintático e fazer um
paralelo com a forma de construção da harmonia tonal, devo finalmente falar em
ritmo e prosódia. É aí que se fazem sentir os paralelos mais evidentes entre
prosa e música, inclusive em termos de nomenclatura. Aliás, na Idade Média,
essa união era inerente à escrita artística. Música e poesia sempre andaram
juntas e durante muito tempo pareciam inseparáveis porque em geral juntadas por
uma só e mesma pessoa. Apenas com o aumento da complexidade das técnicas
musicais, justamente do fim da Idade Média para o Renascimento, os praticantes
de cada uma dessas artes passaram a atuar separadamente. A verdade é que a
prosa boccacciana, como bem demonstra Vittore Branca, pauta-se por conceitos
como o de cursus (cursus planus, tardus e velox)[4] e cláusula, presente em quase todo o texto do Decameron.
O homem formado pelas artes liberais da Idade Média aliava as ciências
retóricas às ciências dos números. A música, como ciência da aplicação da
teoria dos números, permeava tudo. O canto está na raiz do sistema de
versificação em línguas vulgares[5]. No século XIII poesia e música pertenciam ambas à mesma
ciência do ritmo. As leis dos números garantiam-lhes até uma espécie de
transcendência metafísica. A filosofia de Platão, que inspirava o De
Musica de Boécio, ainda constituía a base de teorias como a Ars
Rithmica de João de Garlândia, para quem o ritmo é um princípio do
universo. Não caberia aqui me prolongar nessa interessantíssima intersecção
existente entre arte literária e arte musical na Idade Média. Apenas gostaria
de lembrar que não há sombra dela nos dias de hoje, o que torna inócua para a
quase totalidade dos leitores a presença de algum ritmo premeditado em meio à
prosa. A música deixou de ser considerada fundamental na formação educacional
de nossos jovens. Hoje os alunos têm dificuldade até para identificar sílabas
tônicas e não tônicas. Não deverá passar de bizantinismo para os ouvidos
pragmáticos a noção de que toda prosa tem um ritmo, de que esse ritmo pode ser
intencional e meticulosamente construído, de que a sua presença consegue
produzir fruição estética. Tentar arquitetar uma tradução totalmente orientada
pelo requinte de coadunar significados na construção de um eixo significante
válido na língua de chegada, como se faz na tradução de poesia, é tarefa
hercúlea a que nem sempre é possível dedicar-se. Mesmo assim, em alguns
momentos tentei reproduzir certas cadências, fazendo questão de preservar o que
havia de penetrante e resoluto, sem tentar substituí-lo pelo caricioso e
hesitante, de jamais ferir a concisão em nome de pretensas preferências
estéticas, de conservar a sensação de fôlego sempre renovado, sem a pausa longa
do ponto, respeitando a abundância de pontos-e-vírgulas, conservando a retomada
insistente das ideias em frases iniciadas pelo aditivo “e”, como se nada nunca
se acabasse, e tudo fosse o contínuo que leva da primeira à centésima novela,
de modo que uma coisa se soma sempre à outra, estando tudo suspenso dos lábios
de um narrador que não tem pressa, que emite sua narrativa como um cantor a
entoar um melisma.
Se fui bem-sucedida só o leitor poderá dizer.
[1] “Ao se reconhecer alguma coisa ou alguém,
relaciona-se a percepção atual X1 e a memória
de uma percepção passada X2 a um tipo
abstrato X. Passa-se de uma presença (percepção atual), através de um modelo, a
uma ausência (percepção passada). O reconhecimento é sempre um processo
triádico porque é sempre o confronto entre duas ocorrências (uma atual e outra
lembrada) e um tipo. [...] O processo é triádico porque é preciso que os traços
do objeto que conservo na memória coincidam com os traços do objeto percebido
atualmente. [...] Reconheço X1, objeto de minha
percepção atual, como sendo o mesmo que X2, objeto de minha
percepção passada, se eu tiver conservado na memória um tipo abstrato X que
levou em conta apenas alguns traços pertinentes”. E diz Eco que, se não se
opuser um limite à interpretação, ou seja, sabendo-se “o que é relevante em
função de determinado universo de discurso”, incidiremos no que ele chama de neoplasia
conotativa (Os limites da interpretação, Umberto Eco,
Edit. Perspectiva, S. Paulo, trad. Pérola de Carvalho, 2000, p. 281)
[2] Literary Language and its Public in Late Latin
Antiquity and in the Middle Ages, Princeton University Press, trad. Ralph
Manheim, 1993.
[3] Ver Othon M. Garcia, Comunicação em prosa
moderna, 1975.
[4] O cursus planus è formado por um
polissílabo paroxítono seguido por um trissílabo também paroxítono, como por
exemplo em víncla perfrégit, retributiónem merétur. O tardus,
também chamado ecclesiasticus, é formado por um polissílabo
paroxítono seguido por um quadrissílabo proparoxítono: víncla
perfrégeret,felicitátis percípient. Il velox é
formado por um polissílabo proparoxítono seguido por um quadrissílabo
paroxítono, vínculum fregerámus, consíliis et respónsis.
[5] Surgia então a prosa ad sequentias, o
que se conhece hoje por “sequência”. Trata-se de submeter as notas a longos
melismas, prolongando o –a final da exclamação “aleluia”. Em sua forma
primitiva, a sequência era determinada apenas pela música; sequência de oito,
dez e até vinte frases melódicas (clausulae) formando pares (para o
canto em antifonia), precedidas de uma introdução e seguidas de uma conclusão.
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