quinta-feira, 30 de maio de 2013

A espada e o discurso de Obama

Dorrit Harazim, O Globo
O cenário escolhido por Barack Obama para expor suas reflexões sobre as perdas que a atual guerra perpétua contra o terror vem impondo às liberdades civis não poderia ser mais simbólico: a National Defense University (Colégio Militar) instalada na base de Fort McNair, em Washington. Ali, americanos envergam uniforme e defendem o país desde 1791.
Também na plateia, porém só percebida quando já era tarde, a diminuta cofundadora do grupo Code Pink (Código Rosa), a mais ativa das entidades contrárias às ações militares dos Estados Unidos mundo afora.
Faltando pouco mais de três anos para o término de seu segundo mandato, tempo exíguo para alterar o verbete que o definirá nos anais da História, Obama fez seu mais importante discurso à nação. Teve picos de urgência na voz. Ou de angústia e dúvida, tão diferentes do tom de certeza, quase teimosia, dos pronunciamentos feitos pelo antecessor, George W. Bush.
A exposição foi longa. Para horror de uma parcela dos americanos, o presidente anunciou que o 11 de Setembro de 2001 (data do atentado terrorista múltiplo que derrubou as Torres Gêmeas de Nova York) pertencia ao passado. E que a guerra perpétua travada desde então também caducara.
Era preciso adequar o combate ao terrorismo a tempos novos, com armas novas. Não fazê-lo levaria os Estados Unidos à deriva — não à deriva militar, mas ao esgarçamento perigoso de sua identidade moral.
Ao dizer com todas as letras que chegara a hora de acabar com a difusa Guerra contra o Terror, Obama colocou na mesa uma carta que até então nem no baralho estava. Propôs travar um combate intermitente às novas configurações terroristas de hoje usando ferramentas e métodos de legalidade menos dúbios do que os da era 11 de Setembro.
“Os Estados Unidos estão numa encruzilhada”, informou aos americanos. “Precisamos definir a natureza e o alcance dessa luta ou ela nos definirá. Devemos ter em mente a advertência de James Madison (4º presidente dos Estados Unidos) de que ‘nenhuma nação pode preservar sua liberdade em meio a uma guerra contínua’”.
Ao contrário de seu antecessor, Obama relativizou a capacidade do potencial bélico americano para erradicar um inimigo sem pátria, rosto ou nome. “Nunca apagaremos o mal que repousa no coração de alguns seres humanos nem erradicaremos toda e qualquer ameaça à nossa sociedade livre. Devemos ser humildes em nossas expectativas.” George Bush, ao contrário, jamais teve esse tipo de dúvida ao deslanchar uma guerra para erradicar o Eixo do Mal do planeta.
“Do uso de drones à prisão de suspeitos de terrorismo, as decisões que tomamos hoje vão definir o tipo de nação — e de mundo — que deixaremos para nossos filhos”, avisou o presidente, ao abordar, um a um, os atos mais cabeludos de seu governo na esfera da segurança nacional.
A escalada de ataques com os aviões não tripulados, que contaminou as terras estrangeiras de um ódio civil antiamericano difícil de apagar, foi a mais radical delas. Só contra alvos no Paquistão, houve 309 ataques autorizados por Obama desde 2009 — todos executados pela Central Intelligence Agency (CIA), através de novas funções recebidas a partir do fatídico 11 de Setembro.
Num livro recém-publicado nos Estados Unidos (“The Way Of the Knife”), o jornalista Mark Mazzetti, do “New York Times”, narra a transformação da agência de espionagem em “máquina de matar e caçar humanos” na era Bush. Um mapeamento inédito detalha 11.006 voos secretos realizados pela CIA para sequestrar e prender indivíduos suspeitos de terrorismo.
A aberração da guerra perpétua herdada por Obama se chama Guantánamo. Especificamente, a situação dos presos suspeitos de terrorismo sequestrados mundo afora pela CIA e que definham há uma década na base naval americana fincada em Cuba.
Tema dos mais amargos para o presidente, por atestar sua impotência. Obama não conseguiu fechar a prisão, como prometera. Pior: apesar de 89 presos terem recebido autorização do Pentágono para retornar a seu país de origem há mais de três anos, continuam detidos. Jamais foram julgados nem acusados de qualquer crime.
Ainda há 166 prisioneiros de 23 países em Guantánamo. Mais de 100 estão em greve de fome há mais de 100 dias. Amarrados a cadeiras, são alimentados à força. Se um deles morrer, toda a arquitetura moral do governo Barack Obama desaba.
O presidente fazia a transição entre o tema drones para o pesadelo Guantánamo quando se fez ouvir, lá do fundo da sala, uma voz estridente: era Medea Benjamin, a ativista antiguerras. Ela gritou pelo fim do uso dos drones. Obama prosseguiu e ninguém retirou a ativista do recinto.
Pouco depois, Medea voltou a interromper o presidente. Exigia o fechamento de Guantánamo. “Por que você não senta, e explico o que vou fazer?”, sugeriu Obama.
A terceira intervenção da ativista foi mais insistente, incomodou, foi escoltada para fora do recinto, enquanto ainda emplacava algumas frases: “Desculpe, presidente, mas o senhor é ou não é o comandante em chefe?”, “O senhor vai pedir desculpas aos milhares de muçulmanos que o senhor matou?”, “Vamos compensar as famílias das vítimas inocentes?”, “Eu amo meu país. Eu amo o estado de direito!”
É de praxe que chefes de Estado sejam condescendentes ou falsamente jocosos com quem interrompe a sua fala — ou, dependendo do país, mandem prender o abusado. Barack Obama, no episódio, revelou o melhor de si. E falou sério: “Devemos prestar atenção à voz desta mulher. Obviamente não concordo com muito do que ela disse.
Também é óbvio que ela não prestou muita atenção no que eu dizia. Mas essas são questões difíceis e a ideia de que podemos tratá-las superficialmente está errada.”
Como definiu, a vitória dos EUA contra o terrorismo não será medida numa cerimônia de rendição do inimigo nem com a derrubada de uma estátua do adversário.
Ela se dará quando os pais voltarem a levar seus filhos sem medo à escola, os imigrantes voltarem a se aproximar sem medo das fronteiras, um veterano de guerra voltar para abrir uma empresa, uma jovem continuar a não ter medo de desafiar o seu presidente. “A rejeição do medo é ao mesmo tempo nossa espada e nosso escudo.”
Difícil haver melhor definição de vitória no mundo atual.

4 comentários:

Nélio Lobo disse...

Olá, Bruna, pensei que as promessas não cumpridas de Obama haviam sido esquecidas, inclusive pelo próprio. Mas creio que o campo de concentração de Guantánamo vai apenas mudar de endereço...

Bruna Caixeta disse...

Manoel,

Eu me pergunto - sem cair no vício da repugnância geral pelos governantes dos Estados Unidos e pelas suas ações - se não estariam sempre intencionando a renovação de uma guerra, ainda que eles afirmem estar é fazendo o contrário, esforçando-se para por um fim no que já chamam Guerra ao Terror.

Quando a jornalista parafrasea uma das frases de Obama, a saber:

" Era preciso adequar o combate ao terrorismo a tempos novos, com armas novas. Não fazê-lo levaria os Estados Unidos à deriva — não à deriva militar, mas ao esgarçamento perigoso de sua identidade moral"

e a comparo com “A rejeição do medo é ao mesmo tempo nossa espada e nosso escudo.”

fico a imaginar que o "combate" ao terrorismo só irá ser adptado a uma nova lógica bélica, que usará o tal medo como espada. Muito me amedronta o tipo de guerra "adpatada/adequada" que virá a seguir - já que, para mim, essa ideia de adequar o combate a tempos novos não significaria fim à guerra, como também pareceu, ou quisesse, sugerir Obama.

A rigor, acredito, com uma desilusão enorme, que o Obama (e sua comitiva de assistentes, claro) só conseguem discursos e ações mais habilidosos que o de Bush; no fim, estão apenas continuando a guerra. As palavras e a postura diante da guerra mudam, mas ela continua existindo e espalhando o ódio antiamericano.

Mas... que eu esteja enganada, e o Obama ponha realmente fim ao terror.

Obrigada pela visita e o comentário, Manoel.

Grande abraço.

Márcia disse...

Filha, na minha condição atual de pessoa mais alienada, politicamente falando, me parece que ele é uma pessoa muito corajosa, pois acredito que ele tem vontade de fazer algo de bom de verdade, é claro que tem toda a questão da vaidade do político e do gosto que tomem pelo poder, mas não impede que ele acredite ser possível conseguir algo de bom. Mas não sou otimista como ele, acho que é um caminho sem volta. Serão necessárias dezenas de gerações para deixar essa fase de terror ao terrorismo para trás,e nem sei se isso pode acontecer...

Bruna Caixeta disse...

Tomara essa sua visão otimista e ao mesmo tempo descrente da política de Obama,- como dizem os mais antigos - "vingar" no lado que enxerga positivo e bom nele, mãe.

Já eu sou cética, para não afirmar pessimista, em relação a todos os discursos e posturas dos presidentes norte-americanos, como bem sabe...

Obrigada pela sua visita e pelo comentário.

Um abração bem apertado.