JOÃO UBALDO RIBEIRO - O Estado de S.Paulo - 7 de outubro de 2012 | 3h 12
O pessoal mais antigo da ilha tem muita saudade das eleições nos velhos tempos. Uns se queixam da avacalhação, porque outrora era uma coisa solene e séria, os homens de bem envergavam paletó e gravata, faziam a barba, botavam água de cheiro atrás das orelhas, no sovaco e no lenço, metiam no bolso a caneta Parker usada somente nas grandes assinaturas e se apresentavam decentemente para o cumprimento do sagrado dever. Outros reclamam da falta de graça de não ter mais de ficar escondido por trás de uma cortina, escolhendo cédulas e enchendo envelopes, ou marcando cruzinhas na chapa. E, além disso, eram tempos fartos, o eleitor se dava melhor. Há quem se recorde saudoso da ocasião em que um certo coronel, além dos benefícios que fazia a todos os correligionários, deu um queijo de cuia a cada eleitor - isto mesmo, um queijo de cuia inteiro, ainda dentro da cuia - era acabar de votar e retirar o queijo. Hoje não há mais disso, já se perdeu essa grandeza, eles só querem continuar mamando e não dão nada a ninguém.
Ainda outros argumentam que a maior falta de graça nas eleições
atuais é que acaba tudo na hora e se conhece o resultado imediatamente,
não tem mais torcida nem espera pela virada da noite, para não falar em
recontagem, anulação de urna, fiscal de apuração e aula de como desenhar
o nome. A isso se acresça o argumento, ventilado por Ary de Maninha, em
meio a uma concorrida palestra no bar de Espanha, segundo o qual está
provado por A mais B, nos mais altos círculos da altíssima espionagem,
que as urnas eletrônicas são controladas pela CIA, através de satélites
especializados. "Pode votar quem quiser, em quem quiser", disse Ary.
"Mas a eleição de Itaparica já está na mão da CIA e do FBI, americano
não facilita com ninguém. A gente vota num candidato, eles dão um camone
boy nas urnas e o resultado sai o contrário."
A ilha fechou com Dilma na última eleição presidencial, de maneira
que somente uns dois ou três gatos-pingados mantinham a esperança de que
ela aparecesse na semana passada, para um discursinho ou para pegar uma
moquequinha no Negão e tomar um copo da milagrosa água da Fonte da
Bica. Sabe como é, a ilha já são favas contadas e ela dispõe de ampla
maioria, de forma que pôde dar preferência a outras praças, como São
Paulo, onde o perigo é maior e nesse ponto são mais atrasados, não
adotaram nem o queijo de cuia ainda. Lula, que era esperadíssimo por
Pitu Petê, também não apareceu. Diz Pitu que ele mandou um telegrama,
mas ninguém viu esse tal telegrama, Pitu de vez em quando inventa umas
coisas.
No mais, sabe-se que Jacob Branco já pediu a Manolo do bar para
guardar as petições de um habeas corpus preventivo e de um mandado de
segurança que ele providenciou com um grande advogado amigo seu, no caso
de, no seu dizer, "vierem os poderes públicos a mais uma vez impor
restrições despóticas aos direitos etílicos do cidadão, quando deveriam
reconhecer que, para votar hodiernamente, necessita o indivíduo normal
não só de vedar as narículas como, já sentencia o vulgo, de botar umas
duas no juízo". Pitu Petê, apesar de marcadas e inconciliáveis
divergências políticas com Jacob, concordou nesse ponto e selaram o
acordo com um aperto de mão e diversos brindes.
E a grande surpresa este ano foi a posição de Zecamunista, que, pela
primeira vez na história política da ilha, não apoiou nenhum candidato e
muito menos fez campanha. Quando alguém puxava papo de eleição, ele
tentava mudar de assunto, bocejava espalhafatosamente e às vezes se
retirava, para ir passear na beira do cais da contracosta ou voltar para
casa. Numa dessas vezes, me telefonou. Não queria conversar sobre
política local. Aquilo tudo era passado, eu não imaginava quão passado.
Claro, ele era um visionário e, como todo visionário, tinha um sonho. E
agora, depois de meditação e estudo, chegara à solução para os problemas
políticos do Brasil, à nossa verdadeira reforma política. Não, não era a
criação da carreira de corrupto, ia muito além disso, era a forma
democrática e universalizada de todo mundo se fazer, como é o ideal do
político brasileiro.
- É tudo baseado em conceitos democráticos - disse ele. - Na
democracia não são todos iguais? Se são todos iguais, não há necessidade
de eleição, basta um sorteio benfeito, todo mundo com chances também
iguais. Sorteava Senado, sorteava Câmara, sorteava assembleias, sorteava
tudo. Entrariam no páreo todos os acima de 21 anos, 35 para o Senado,
de qualquer sexo e classe social. Não ia ter essa de poder econômico,
popularidade de televisão, apadrinhamento, cara bonita, nada disso,
chances democraticamente iguais para todos, ninguém ia poder alegar
favoritismo. Quem fosse sorteado tinha que servir, como no Exército.
Sentiu a revolução? Sentiu como está resolvido o problema da corrupção?
- Você acha que a corrupção será eliminada desse jeito?
- Claro que não, é exatamente o contrário. Você esquece que meu
projeto não é eliminar a corrupção, é democratizar a corrupção, é um
processo de inclusão dos marginalizados. Você já imaginou, dentro desse
esquema, as oportunidades de negociatas e altas jogadas de todo tipo? Só
ia ficar de fora quem quisesse, até porque a primeira coisa que eles
iam aprovar seria a possibilidade de se vender a vaga de vereador,
deputado ou senador. Ia ser um mercado mais movimentado que a bolsa de
valores de Nova York.
- Mas você acha que ia dar certo?
- Claro que dá, tenho plena certeza. Eu sei porque é o mesmo que eles
já fazem hoje, é a mesma ladroeira de sempre, só que desta vez vai ser
às claras, nosso mal tem sido querer negar nossa vocação histórica.
Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,reformapolitica-,941593,0.htm
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