quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A vitalidade da afeição terna

   [...] Atravessou a varanda, muito apressado, com as mãos escondidas nas enormes mangas de um jaquetão, cuja gola lhe subia até a nuca, uma criança de uns dez anos de idade. Tinha o cabelo à escovinha, os sapatos grandemente desproporcionados, calças de zuarte dobradas na bainha, olhos espantados, gestos desconfiados e um certo movimento rápido de esconder a cabeça nos ombros, que lhe traía o hábito de levar pescoções.
   Este era em tudo mais novo que os outros [escravos] - em idade, na casa e no Brasil. Chegara havia coisa de seis meses da sua aldeia no Porto; dizia chamar-se Manuelzinho e tinha sempre os olhos vermelhos de chorar à noite com saudades da mãe e da terra.
   Por ser o mais novo da casa, varria o armazém, limpava as balanças e burnia os pesos de latão. Todos lhe batiam sem responsabilidade; não tinha a quem se queixar. Divertiam-se à custa dele; riam-se com repugnância das suas orelhas cheias de cera escura.
   Desfeava-lhe a testa uma grande cicatriz; foi um trambolhão que levou na primeira noite em que lhe deram uma rede para dormir. O pobre desterradozinho, que não sabia haver-se com semelhante engenhoca, caiu na asneira de meter primeiro os pés, e zás! Lá foi por cima de uma caixa de pinho de um dos companheiros. Desde esse dia ficou conhecido em casa pela alcunha de "Salta- chão". Punham-lhe nomes feios e chamavam-lhe "Ó coisa! Ó maroto! Ó bisca!" Tudo servia para o chamarem, menos o seu verdadeiro nome.
   Ia atravessando a varanda, como um bicho assustado, quase a correr. O cônego gritou por ele:
   - Ó pequeno? Anda cá!
   Manuelzinho voltou, confuso, coçando a nuca, muito contrariado, sem levantar os olhos.
   Ana Rosa teve um olhar de piedade.
  Então, que é isso? - disse o cônego. - Pareces-me um bicho do mato! Fala direito com a gente, rapaz! Levanta essa cachimônia!
   E, com a sua mão branca e fina, suspendeu-lhe pelo queixo a cabeça, que Manuelzinho isistia em ter baixa. 
   - Este ainda está muito peludo!... - acrescentou. E perguntou-lhe depois uma porção de coisas: "se tinha vontade de enriquecer; se não sonhava já com uma comenda; se tinha visto o pássaro guariba; se encontrara a árvore das patacas..." O pequeno mastigava respostas inarticuladas, com um sorriso aflito.
   - Como te chamas?
   Ele não respondeu.
   - Então não respondes?... Com certeza és Manuel!
   O portuguesinho meneou a cabeça afirmativamente, e apertou a boca, para conter o riso que procurava uma válvula.
   Então é com a cabeça que se responde? Tu não sabes falar, mariola?
   E, voltando-se para Ana Rosa:
   - Isto é um sonso, minha afilhada! Olhe em que estado ele traz as orelhas! Se tens a alma como tens o corpo, podes dá-la ao diabo! Tu já te confessaste aqui, maroto?
   Manuelzinho, não podendo já suster os beiços, abriu a boca e, com a força de uma caldeira, soprou o riso que a tanto custo refreava.
   - Olha que estás a cuspir-me, ó patife! - gritou o cônego. - Bom, bom! Vai-te! Vai-te!
   Repeliu-o e limpou a batina com o lenço.
   Ana Rosa então correu os dedos pela cabeça do menino e puxou-o para si. Arregaçou-lhe as mangas da jaqueta e revistou-lhe as unhas. Estavam crescidas e sujas.
   - Ah! - censurou ela - você também não é tão pequeno que se desculpe isto.
   E, tirando do seu indispensável uma tesourinha, começou, com grande surpresa do caixeiro e até do cônego, a limpar as unhas da criança, dizendo ao outro, baixinho:
   - Não sei como há mães que se separam de filhos desta idade... Também, coitados! Devem amargar muito!...
   A sua voz tinha já completa solicitude de amor materno.
   O cônego levantou-se e foi encostar-se ao parapeito da varanda, enquanto Ana Rosa, que continuava a cortar as unhas do menino, ia em segredo perguntando a este se não tinha saudades da sua terra e se não chorava ao lembrar-se da mãe.
   Manuelzinho estava pasmado. Era a primeira vez que no Brasil lhe falavam com aquela ternura. Levantou a cabeça e encarou Ana Rosa; ele, que tinha sempre o olhar baixo e terrestre, procurou, sem vacilar, os olhos da rapariga e fitou-os, cheio de confiança, sentindo por ela um súbito respeito, uma espécie de adoração inesperada. Afigurava-se extraordinário, ao pobrezito desprezado de todos, que aquela senhora brasileira, tão limpa, tão bem-vestida, tão perfumada e com as mãos tão macias, estivesse ali a cortar-lhe e assear-lhe as unhas.
   A princípio foi isso para ele um sacrifício horrível, um suplício insuportável. Desejava, de si para si, ver terminada aquela cena incômoda; queria fugir daquela posição difícil; resfolegava, sem ousar mexer com a cabeça, olhando para os lados, de esguelha como à procura de uma saída, de algum lugar onde se escondesse ou de qualquer pretexto que o arrancasse dali.
   Sentia-se mal com aquilo, que dúvida! Não se animava a respirar livremente, receoso de fazer notar o seu hálito pela senhora; já lhe doíam as juntas do corpo, tal era a sua imobilidade contrafeita; não mexia sequer com um dedo. Depois do primeiro minuto de sacrifício, o suor começou logo a correr-lhe em bagas da cabeça pela gola do jaquetão, e o pequeno teve verdadeiros calefrios: mas, quando Ana Rosa lhe falou da pátria e da mãe, com aquela penetrante meiguice que só as próprias mães sabem fazer, as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos e desceram-lhe em silêncio pela cara.
   Pois se era a primeira vez que no Brasil lhe falavam dessas coisas!... [...]
  Quando Ana Rosa acabou de cortar as unhas de Manuelzinho, deu-lhe de conselho que estudasse alguma coisa; prometeu que arranjaria com o pai metê-lo em uma aula noturna de primeiras letras, e recomendou-lhe que todos os dias de manhã tomasse o seu banho debaixo da bomba do poço.
   - Faça isso, que serei por você - rematou a moça, afastando-o com uma ligeira palmada na cabeça.
   O menino retirou-se, muito comovido, para o andar de cima, mas o Dias, de pé, no tope da escada, esperava por ele, furioso.
   - Que estava fazendo, seu traste?
   - Nada - respondeu a criança a tremer. Fora a senhora que o chamara!...
   Dias, com um murro, explicou que o maroto não podia pôr-se de palestra na varanda, em vez de cuidar das obrigações.
   - E se me constar - acrescentou, cada vez mais zangado - que você me torna a ir com lamúrias para o lado de dona Anica, comigo se tem de haver, seu mariola! Vai tudo aos ouvidos do patrão!
   Manuelzinho arredou-se dali, convencido de que havia praticado uma tremenda falta; no íntimo, porém, ia muito satisfeito com a ideia de que já não estava tão desamparado, e sentindo renascer-lhe, na obscura mágoa do seu desterro, um desejo alegre de continuar a viver.

AZEVEDO, Aluísio. O mulato. São Paulo: Martin Claret, 2002,  pp. 41- 46.  
     

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