quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A mão e a luva

   Três homens, Estevão, Luís Alves e Jorge se apaixonam e pretendem para casar a mesma mulher, Guiomar. Dois são amigos, Estevão e Luís Alves, e um destes, Luís Alves, começa na história consolando Estevão por ter perdido a mulher amada, Guiomar, e termina casado com esta mesma mulher, que para ele, ao cabo, passa ser também a mulher amada. 

  Guiomar, da sua parte, deve decidir-se pelo casamento com Luís Alves, preferência sua, ou Jorge, pretendente escolhido pela sua madrinha baronesa e a companheira inglesa, Mrs. Oswald, quem faz mais tormentosa a decisão. Tal consorte insinua insistente uma responsabilidade que a jovem deveria ter em manter a baronesa feliz, em gratidão por ela ter-lhe oferecido uma condição de vida melhor que a que tinha quando ainda os pais eram vivos e morava com eles. Um tipo egoísta e mercenário, Mrs. Oswald somente inventa este problema na tomada de decisão de Guiomar, porque o convencer a moça a ter a mesma escolha que a baronesa é vantajoso para sua relação com esta senhora.

   Guiomar, por esta razão, estagna na seleção entre Jorge e Luís Alves. E Estevão nem chega a participar do pário, porque é rapidamente rejeitado por seu espírito sonhador e romanesco não ter afinidade com a personalidade de Guiomar, não calhada somente numa vida sentimental e piegas e cuja imaginação “nem lhe dava para ir colher flores em regiões selváticas ou adormecer à beira de lagos azuis”. Ela pondera que a opção por Jorge seria perfeita apenas pela obediência à vontade da baronesa, pois o que ele tinha a lhe oferecer era a pouco atraente vida vegetativa e monótona da corte. Já a escolha por Luís Alves, bacharel e recém vitorioso nas eleições, parece ideal, porque sua figura reúne em si “as afeições doméstica com o ruído do exterior” - características convenientes para a jovem afeita ao reconhecimento público de sua beleza e à garantia de uma vida doméstica segura.

   Sem deixar de passar por dificuldades na decisão, pelos conflitos entre a escolha pessoal e a escolha alheia, de tomar a decisão e querer voltar atrás, Guiomar termina casada com Luís Alves. Este é o desfecho da história descrita acima, enredo do romance A mão e a luva (1874) de Machado de Assis. Através dele, é possível definirmos e conhecermos mais o que foi o chamado “realismo machadiano” e porque se diz hoje que Machado de Assis, no século XIX, estaria escrevendo romances diferentes, até superiores, aos dos seus contemporâneos de estilo ou gênero, como José de Alencar e Aluísio Azevedo - entre outros.

   O enredo de A mão e a luva poderia levar imediatamente a três desfechos díspares. O primeiro, Guiomar casada com Estevão; o segundo, Guiomar casada com Jorge e, por fim, Guiomar casada com Luís Alves. Uma justificativa para a opção de Machado de não casar Guiomar com Estevão, é a do autor não intentar fazer da sua história um romance romântico à Joaquim Manuel de Macedo (e Alencar, por vezes); a outra escolha, em não casar Guiomar com Jorge, justificaria-se pelo autor não querer colocar a personagem somente à mercê do seu meio e marionete dos fatores sociais exclusivamente, em que todas as ações e decisões são determinadas em função dele, à maneira de Aluísio Azevedo. O casamento de Guiomar com Luís Alves representaria o equilíbrio das forças que concorrem para as ações das pessoas, cujas decisões e atitudes parecem ser nada mais que a reunião da sua vontade individual mais as ambições sociais, votadas pelas imposições das formas de vida de determinada sociedade.
   Os personagens machadianos da história assemelham-se muito com os personagens de Stendhal, segundo a opinião que tem destes últimos Erich Auerbach, no seu ensaio “Na Mansão de La Mole”, presente no, já célebre, Mimesis. Segundo Auerbach, Stendhal “vê o homem individual muito menos como produto da sua situação histórica e como coadjuvante da mesma do que como um átomo dentro dela. O homem parece ter sido jogado quase fortuitamente no ambiente em que vive; é um obstáculo com o qual se pode dar bem ou mal; não é propriamente um solo nutriz, com o qual esteja unido organicamente. Além disso, a concepção stendhaliana do homem é, no seu conjunto, preponderantemente materialista e sensualista” (p. 416; Perspectiva, 2009). Na mesma medida, Machado, demonstra esta relação homem-meio/história mais representada de forma que o homem é vítima do meio, da história, do que seu produto. E ao pô-lo como vítima do meio, da história, não anula a sua vida individual, legando ao meio/história tomar completamente as rédeas das ações humanas.

   É o que vem demonstrado na personagem Guiomar. Quando opta por colocar a necessidade de escolha da personagem e a sua decisão com qual marido casar em problema, Machado traz para o âmbito dos sentimentos humanos essa discussão do homem vítima do meio. O amor e a paixão que aparentemente são sentimentos inteiros definidos por fatores individuais e particulares, são sim apresentados como resultados de uma ambição particular, mas definida em grande parte pelo social. Guiomar nutre um sentimento de amor verdadeiro por Luís Alves, mas por ser ele o homem que cumpre o que ela almeja ter na vida: reconhecimento e vida doméstica. Este sentimento que é particular a Guiomar, é, entretanto, estreitamente vinculado e determinado pelo meio, onde se acha a valorização do reconhecimento público e da vida doméstica. Portanto, a personagem feminina - que não deixa de dar voz para o coletivo de homens do qual somos parte -, tem uma escolha sua, mas esta escolha parece ter sido muito mais tomada pelo funcionamento das relações sociais, da história de que é parte, do que pura e exclusivamente por ela. Guiomar é uma vítima do meio, mas decide por ela mesma, ainda que esta decisão esteja muito mais ligada a aspectos sociais, o que, ainda assim não a anula como ser humano e a faz somente produto do lugar e das relações onde vive.

   Tomar o amor por este viés mostra-o como um sentimento egoísta, em que está em jogo de forma dominante e decisiva, as conveniências e os interesses particulares (porém ditados pelas regras sociais). É uma visão materialista dos sentimentos e atitudes do homem, esta apresentada por Machado, mas não inverossímel. Realista como era sua visão, o homem do meio teria um sentimento de amor justificado justamente por questões que envolviam este mesmo meio. Particular foi sua maneira de ir à contramão, ou pelo menos em via diferente, das que escolhiam seus contemporâneos mais extremistas, que ora só colocavam o homem preso a uma vida sentimental, ora esquecia-se dele individualmente e o colocava produto exclusivo do meio. O realismo de Machado, ainda que ditado e norteado pela visão materialista dos sentimentos e ações do homem, sem os fatais determinismo românticos e espaciais, foi mais fiel, honesto e em concordância com a natureza humana; por isso seus romances, corretamente, serem tomados como superiores e avançados em comparação com alguns dos seus contemporâneos. 

   Com “uma história como esta, em que o autor mais se ocupa de desenhar um ou dous caracteres, e de expor alguns sentimentos humanos”, Machado contribuiu para suprir uma lacuna que ele mesmo observou, no seu ensaio Instinto de nacionalidade, existir na literatura brasileira de seu tempo: a do romance de análise. E, claro, de exemplificar com maestria, que as "tendências da alma e os cálculos da vida" são mais fronteiriços do que se imagina.

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