O segundo livro de Quintana, Canções, foi lançado pela Globo em 1946, em edição ilustrada por Noêmia, apresentando um conjunto de 35 poemas. O lançamento se deu seis anos após a estreia do autor com os sonetos da Rua dos Cataventos, publicado em 1940. [...]
Nas Canções, o poeta gaúcho deixa-se levar mais ao sabor do próprio poema, permitindo que ele o conduza pelos caminhos da sonoridade e da dança, explorando inclusive o espaço gráfico e desligando-se do conteúdo significativo em favor do elemento sonoro dos versos. [...]
Além disso, a presença da fantasia, comum nas narrativas primitivas das mais diferentes culturas, aliada a certas construções de tipo marcadamente popular como as cantigas de roda e o acalanto, colaboram para a formação do quadro geral dos poemas. [...]
São justamente alguns desses elementos que se destacam ao longo das Canções pelo fato de ali estarem dispersos elementos temáticos relacionados a antigas tradições folclóricas de caráter universal, muitos deles pertencentes a baladas e cantigas medievais. [...]
Sua poesia depurada e aparentemente singela mostra, na verdade, um poeta cujo centro de interesse se encontra num plano puramente estético, e que busca obstinadamente a beleza poética no momento fugidio, nos detalhes sensíveis da realidade, nos objetos que, tocados pelo seu olhar mágico, se transfiguram, adquirindo novos e inusitados sentidos. Este é o ideal supremo da criação artística de Quintana, pois, para ele, a poesia é a verdadeira essência da vida.
Por Gilda Neves da Silva Bittencourt, no texto "Canções: musicalidade e feição popular", disponível nas primeiras páginas da edição de 2005 da Globo.
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A canção da menina e moça
Para Gilda Marinho
Uma paisagem com um só coqueiro.
Que triste!
E o companheiro?
Cabrinha que sobes o monte pedrento.
Só, contra as nuvens.
Será teu esposo o vento?
O meu esposo há de cheirar a tronco,
Como eu cheiro à flor.
Um coração não cabe num só peito:
Amor... Amor...
Uma paisagem com um só coqueiro...
Uma igrejinha com uma torre só...
Sem companheira... Sem companheiro...
Ó dor!
O meu esposo há de cheirar a tronco,
Como eu cheiro... Como eu cheiro
A amor...
(p.48)
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Canção do dia de sempre
Para Norah Lawson
Tão bom viver dia a dia...
A vida, assim, jamais cansa...
Viver tão só de momentos
Como essas nuvens do céu...
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...
(p.47)
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Canção ballet
Para Edy Dutra da Costa
Ele sozinho passeia
Em seu palácio invisível.
Linda moça risca um riso
Por trás do muro de vidro.
Risca e foge, num adejo.
Ele para, de alma tonta.
Um beijo brota na ponta
Do galho do seu desejo.
E pouco a pouco se achegam.
Põem a palma contra a palma.
Mas o frio, o frio do vidro
Lhe penetra a própria alma!
"Ai do meu Reino Encantado,
Se tudo aqui é impossível...
Pra que palácio invisível
Se o mundo está do outro lado?"
E inda busca, de alma louca,
Aquele lábio vermelho.
Ai, o frio da própria boca!
O amor é um beijo no espelho...
(p. 45)
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Pequena crônica policial
Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida...
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriram, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no Céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!
(p.58)
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Canção do amor imprevisto
Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.
Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...
E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender nada, numa alegria atônita...
A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos!
(p.62)
QUINTANA, Mario. Canções. São Paulo: Globo, 2005.
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