quarta-feira, 27 de junho de 2012

As canções de Quintana

     O segundo livro de Quintana, Canções, foi lançado pela Globo em 1946, em edição ilustrada por Noêmia, apresentando um conjunto de 35 poemas. O lançamento se deu seis anos após a estreia do autor com os sonetos da Rua dos Cataventos, publicado em 1940. [...]
    Nas Canções, o poeta gaúcho deixa-se levar mais ao sabor do próprio poema, permitindo que ele o conduza pelos caminhos da sonoridade e da dança, explorando inclusive o espaço gráfico e desligando-se do conteúdo significativo em favor do elemento sonoro dos versos. [...]
  Além disso, a presença da fantasia, comum nas narrativas primitivas das mais diferentes culturas, aliada a certas construções de tipo marcadamente popular como as cantigas de roda e o acalanto, colaboram para a formação do quadro geral dos poemas. [...]
   São justamente alguns desses elementos que se destacam ao longo das Canções pelo fato de ali estarem dispersos elementos temáticos relacionados a antigas tradições folclóricas de caráter universal, muitos deles pertencentes a baladas e cantigas medievais. [...]
   Sua poesia depurada e aparentemente singela mostra, na verdade, um poeta cujo centro de interesse se encontra num plano puramente estético, e que busca obstinadamente a beleza poética no momento fugidio, nos detalhes sensíveis da realidade, nos objetos que, tocados pelo seu olhar mágico, se transfiguram, adquirindo novos e inusitados sentidos. Este é o ideal supremo da criação artística de Quintana, pois, para ele, a poesia é a verdadeira essência da vida. 

Por Gilda Neves da Silva Bittencourt, no texto "Canções: musicalidade e feição popular", disponível nas primeiras páginas da edição de 2005 da Globo.

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 A canção da menina e moça
                                 Para Gilda Marinho

Uma paisagem com um só coqueiro.
Que triste!
E o companheiro?

Cabrinha que sobes o monte pedrento.
Só, contra as nuvens.
Será teu esposo o vento?

O meu esposo há de cheirar a tronco,
Como eu cheiro à flor.

Um coração não cabe num só peito:
Amor... Amor...

Uma paisagem com um só coqueiro...
Uma igrejinha com uma torre só...
Sem companheira... Sem companheiro...
Ó dor!

O meu esposo há de cheirar a tronco,
Como eu cheiro... Como eu cheiro
A amor...  
(p.48)
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Canção do dia de sempre
                          Para Norah Lawson

Tão bom viver dia a dia...
A vida, assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como essas nuvens do céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...
(p.47)
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Canção ballet
            Para Edy Dutra da Costa

Ele sozinho passeia
Em seu palácio invisível.
Linda moça risca um riso
Por trás do muro de vidro.

Risca e foge, num adejo.
Ele para, de alma tonta.
Um beijo brota na ponta
Do galho do seu desejo.

E pouco a pouco se achegam.
Põem a palma contra a palma.
Mas o frio, o frio do vidro
Lhe penetra a própria alma!

"Ai do meu Reino Encantado,
Se tudo aqui é impossível...
Pra que palácio invisível
Se o mundo está do outro lado?"

E inda busca, de alma louca,
Aquele lábio vermelho.
Ai, o frio da própria boca!
O amor é um beijo no espelho...
(p. 45)
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Pequena crônica policial

Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida...
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriram, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no Céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!
(p.58)
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Canção do amor imprevisto

Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,

Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender nada, numa alegria atônita...

A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos!
(p.62)

QUINTANA, Mario. Canções. São Paulo: Globo, 2005.


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