sexta-feira, 20 de abril de 2012

De Borges, pequenos poemas-prosa



O etnógrafo


O caso foi-me narrado no Texas, mas tinha ocorrido
em outro estado. Conta com um único protagonista,
não obstante em toda história os protagonistas
sejam milhares, visíveis e invisíveis, vivos e mortos.
Chamava-se, creio, Fred Murdock. Era alto à maneira
americana, nem loiro nem moreno, com um perfil de
machado, de muito poucas palavras. Não havia nele
nada de singular, nem sequer essa fingida singularidade
que é própria dos jovens. Naturalmente respeitoso,
não desacreditava dos livros nem dos que escrevem
os livros. Estava naquela idade em que o homem ainda
não sabe quem é e está pronto para se entregar ao que
o acaso lhe propõe: a mística do persa ou a desconhecida
origem do húngaro, as aventuras da guerra ou da
álgebra, o puritanismo ou a orgia. Na universidade
aconselharam-no a estudar línguas indígenas. Há ritos
esotéricos que perduram em certas tribos do oeste; seu
professor, um homem entrado em anos, propôs-lhe que
fosse morar numa reserva, a fim de observar os ritos
e descobrir o segredo que os bruxos revelam ao iniciado.
Ao voltar, redigiria então uma tese que as autoridades
do instituto publicariam. Murdock aceitou, exultante.
Um de seus antepassados morrera nas guerras
da fronteira; essa antiga discórdia de suas estirpes era
um vínculo agora. Previu, certamente, as dificuldades
que o esperavam; devia conseguir que os homens
vermelhos o aceitassem como um dos seus. Empreendeu
a longa aventura. Morou mais de dois anos na pradaria,
entre paredes de adobe ou a céu aberto. Levantava-se
antes da aurora, deitava-se ao anoitecer, chegou a sonhar
num idioma que não era o de seus pais. Acostumou
seu paladar a sabores ásperos, cobriu-se com roupas
estranhas, esqueceu os amigos e a cidade, chegou a
pensar de um modo que sua lógica rejeitava. Durante os
primeiros meses de aprendizado tomava notas sigilosas,
que depois rasgaria, talvez para não levantar suspeitas,
talvez porque já não precisasse delas. No final de um
prazo predeterminado por certos exercícios, de índole
moral e de índole física, o sacerdote ordenou-lhe
que fosse recordando seus sonhos e que os confiasse
a ele quando o dia clareasse. Comprovou que nas noites
de lua cheia sonhava com bisões. Confiou esses repetidos
sonhos a seu mestre; este acabou lhe revelando a
doutrina secreta. Certa manhã, sem se despedir de
ninguém, Murdock partiu.
   Na cidade, sentiu saudades daquelas tardes iniciais na
pradaria em que havia sentido, tempos antes, saudades
da cidade. Dirigiu-se ao gabinete do professor e lhe disse
que conhecia o segredo e que havia decidido não revelá-lo.
   - Está preso a um juramento? - perguntou o
outro.
   - Não é essa a razão - disse Murdock. - Naqueles
ermos aprendi algo que não posso contar.
   - Talvez a língua inglesa seja insuficiente? - observaria o outro.
   - Nada disso, senhor. Agora que possuo o segredo,
poderia enunciá-lo de cem maneiras diferentes e mesmo
contraditórias. Não sei muito bem como lhe dizer que o
segredo é precioso e que agora a ciência, nossa ciência,
parece-me uma mera frivolidade.
   Depois de uma pausa, acrescentou:
   - Além do mais, o segredo não vale o que valem os
caminhos que a ele me levaram. Esses caminhos devem
ser trilhados.
   O professor disse friamente:
   - Comunicarei sua decisão ao Conselho. O senhor
pensa viver entre os índios?
   Murdock respondeu:
   - Não. Talvez não volte à pradaria. O que seus
homens me ensinaram vale para qualquer lugar e para
qualquer circunstância.
   Foi essa a essência do diálogo.
   Fred casou-se, divorciou-se e agora é um dos
bibliotecários de Yale.


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Pedro Salvadores


Quero deixar escrito, quem sabe pela primeira vez, um
dos fatos mais estranhos e mais tristes de nossa história.
Intervir o mínimo possível em sua narração, prescindir
de acréscimos pitorescos e de conjecturas arriscadas é,
parece-me, a melhor maneira de fazê-lo.
   Um homem, uma mulher e a vasta sombra de um
ditador são os três personagens. O homem se chamava
Pedro Salvadores; meu avô Acevedo o viu, dias ou
semanas depois da batalha de Caseros. Pedro Salvadores
talvez não diferisse das pessoas comuns, mas seu destino
e os anos o tornaram único. Devia ser um senhor como
tantos outros de sua época. Devia ter (cabe-nos supor)
uma propriedade rural e era unitário. O sobrenome
de sua mulher era Planes; os dois moravam na rua
Suipacha, não longe da esquina do Temple. A casa em
que os fatos ocorreram devia ser igual às outras: a porta
da rua, o vestíbulo, a porta gradeada, os aposentos,
a profundidade dos pátios. Certa noite, em 1842, ouviram
o crescente e surdo rumor dos cascos dos cavalos na 
rua de terra e os gritos de vivam e morram dos ginetes.
O bando da Mazorca, desta vez, não passou ao largo.
À balbúrdia sucederam-se os repetidos golpes,
e, enquanto os homens derrubavam a porta, Salvadores
conseguiu empurrar a mesa da sala de jantar, levantar 
o tapete e se esconder no porão. A mulher repôs a mesa
no lugar. A Mazorca irrompeu; vinham para levar
Salvadores. A mulher declarou que ele tinha fugido para
Montevidéu. Não acreditaram; açoitaram-na, quebraram
toda a louça azul-celeste, revistaram a casa, mas não lhes
ocorreu levantar o tapete. À meia-noite foram embora,
não sem antes jurar que voltariam.
   Aqui começa, de fato, a história de Pedro Salvadores.
Viveu nove anos no porão. Por mais que ponderemos
que os anos são feitos de dias e os dias de horas e que
nove anos é um termo abstrato e uma soma impossível,
essa história é atroz. Desconfio que na sombra que seus 
olhos aprenderam a decifrar ele não pensava em nada,
nem mesmo em seu ódio ou no risco que corria. Estava
lá, no porão. Alguns ecos daquele mundo agora proibido
lhe viriam de cima: os costumeiros passos da mulher, 
o baque do bocal do poço e do balde, a chuva pesada no
pátio. Além disso, cada dia podia ser o último.
   A mulher foi despedindo a criadagem, que seria
capaz de delatá-los. Disse a todos os seus que Salvadores
estava na Banda Oriental. Ganhou o pão dos dois 
costurando para o exército. No decurso dos anos teve
dois filhos; a família a repudiou, atribuindo-os a um 
amante. Depois da queda do tirano, iriam, de joelhos,
pedir-lhe perdão.
   O que foi, quem foi Pedro Salvadores? Encarceraram-no
o terror, o amor, a invisível presença de Buenos Aires e, 
por fim, o hábito? Para que não deixasse só, a mulher lhe
daria incertas notícias de conspirações e de vitórias.
Talvez fosse um covarde e a mulher, lealmente, tenha
ocultado que sabia disso. Imagino-o em seu porão, talvez
sem um candeeiro, sem um livro. A sombra o sumiria no 
sonho. No começo ele sonharia com a noite medonha em
que o aço procurava a garganta, com as ruas abertas, com
o pampa. No decorrer dos anos, não poderia mais fugir e 
sonharia com o porão. No começo seria um perseguido,
um ameaçado; depois, não saberemos nunca, um animal 
tranquilo em sua toca ou uma espécie de obscura 
divindade.
   Tudo isso até aquele dia do verão de 1852 em que 
Rosas fugiu. Foi então que o homem secreto saiu à luz
do dia; meu avô falou com ele. Flácido e obeso, estava 
da cor da cera e não falava em voz alta. Nunca lhe 
devolveram os campos que lhe foram confiscados; creio 
que morreu na miséria.
   Como todas as coisas, o destino de Pedro Salvadores 
parece-nos um símbolo de algo que estamos prestes a 
compreender.
  
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His end and his beginning


Cumprida a agonia, já sozinho, já sozinho e dilacerado
e rejeitado, mergulhou no sono. Quando acordou,
aguardavam-no os hábitos cotidianos e os lugares; disse
consigo que não devia pensar demais na noite anterior
e, animado por essa vontade, vestiu-se sem pressa. No
escritório, cumpriu passavelmente seus deveres, ainda
que com a incômoda impressão que o cansaço nos 
confere de repetir algo já feito. Pensou perceber que
os outros desviavam o olhar; talvez já soubessem que 
estava morto. Nessa noite começaram os pesadelos;
não lhe deixavam a menor lembrança, só o temor
de que voltassem. Com o tempo o temor prevaleceu;
interpunha-se entre ele e a página que devia escrever
ou o livro que tentava ler. As letras formigavam e 
pululavam; os rostos, os rostos familiares, iam se
apagando; as coisas e os homens foram-no deixando.
Sua mente se aferrou e essas formas cambiantes, como
num frenesi de tenacidade.
   Por mais estranho que pareça, nunca suspeitou da
verdade; esta o iluminou subitamente. Compreendeu
que não podia se lembrar das formas, dos sons e das
cores dos sonhos; não havia formas, cores nem sons,
e não eram sonhos. Eram sua realidade, uma realidade
além do silêncio e da visão e, por conseguinte, da 
memória. Isso o consternou mais do que o fato de que
a partir da hora de sua morte estivera lutando num
redemoinho de imagens insensatas. As vozes que ouvira 
eram ecos; os rostos, máscaras; os dedos de sua mão
eram sombras, vagas e insubstanciais, sem dúvida, mas
também amadas e conhecidas.
   De algum modo sentiu que era seu dever deixar
essas coisas para trás; agora pertencia a este novo 
mundo, livre de passado, de presente e de futuro.
Pouco a pouco este mundo o circundou. Sofreu muitas
agonias, atravessou regiões de desespero e solidão. Essas 
peregrinações eram atrozes porque superavam todas as 
suas anteriores percepções, memórias e esperanças. Todo 
o horror jazia em sua novidade e esplendor. Merecera a
Graça, desde sua morte sempre estivera no céu.


BORGES, Jorge Luis. Poesia/ Jorge Luis Borges. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 38-40; 46-48; 73-74.

4 comentários:

Nélio Lobo disse...

Na narrativa sobre o destino de Salvadores um detalhe me deixou curioso: quem é Rosas? Grande abraço.

Bruna Caixeta disse...

Olá, Manoel!

Rosas, creio eu, se refere a Juan Manuel de Rosas, um déspota, chefe do Partido Federal argentino a partir de 1828.

Rosas perseguiu os que não pertenciam ao seu grupo político, obrigando essas pessoas a buscar refúgio nos países vizinhos. Além do exército regular, Rosas criou o bando dos Mazorcas, encarregado de assassinar os suspeitos. E procurou também subjugar Montevidéu, que se tornara refúgio dos perseguidos políticos argentinos - mas não obteve êxito nas muitas empreitadas para tanto. Só após a Batalha de Monte Caseros, ocorrida em 1852, que as tropas do ditador argentino, e ele próprio, foram derrotados.

Pelo breve relato biográfico de Rosas, é possível perceber que foi ele o responsável por forçar Pedro Salvadores a se manter escondido por anos...

Obrigada pela visita, Manoel.

Grande abraço.

Nélio Lobo disse...

Grato pelo rico e oportuno esclarecimento, Bruna. Abração.

Bruna Caixeta disse...

Abração, Manoel.