sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O sorriso do lagarto

Foto: Lívio Soares de Medeiros

   Para aqueles que leem o romance O sorriso do lagarto (1989), de João Ubaldo Ribeiro, sem saber que o enredo tratará das aberrações genéticas desenvolvidas pela Medicina, somente após passarem por uma extensa e repugnante retratação do universo pernicioso do político Ângelo Marcos, o da sua esposa Ana Clara, o dos seus amigos, Bebel e Nando, bem como dos diálogos apáticos do médico Lúcio Nemésio e dos rituais de terreiro (sem higiene) do supersticioso Bará, chegam ao tema das aberrações.

   É de se perguntar, por que um tema tão caro como o das manipulações da engenharia genética, perde espaço para a suja e viva mostra do cotidiano vil da maioria dos personagens. Por que João Ubaldo opta por mostrar as ações políticas corruptas de Ângelo Marcos, seus sofrimentos com um câncer, o envolvimento com drogas, com o homossexualismo e uma vida somente respaldada em prazeres burgueses fúteis - como o de beber, comer e vestir apenas produtos com rótulos internacionais? Por que o autor baiano ainda, faz da sua personagem Ana Clara, um simulacro fiel de Lady Chatterley (personagem do escritor inglês D. H. Lawrence), ao descrever as fantasias eróticas dela, que só tinha como ocupação existencial, preencher um diário na pessoa lasciva de Suzanna Fleischman, trair o marido e conversar futilidades ou assuntos de natureza erótica com a amiga Bebel, a qual, também cultivando uma vida medíocre, só interessava saber qual seria o próximo e diferente homem com quem se deitaria. E mais além, por que o enredo do livro propositalmente nos permite conhecer o médico Lúcio Nemésio, primeiro por intermédio de seus diálogos ateus e pouco preocupados com o resultado negativo das possibilidades (quase ilimitadas) das invenção da ciência, para, só depois, o leitor ter como elemento último da história, a revelação de que o mesmo Lúcio Nemésio, desenvolvia híbridos de homens e macacos, obrigando mulheres negras a parirem essas aberrações?

   Para todos esses porquês há uma justificativa. O romance O sorriso do lagarto é, antes de uma discussão séria sobre os rumos das descobertas genéticas, um retrato de uma humanidade, na sua dominante maioria, sem qualquer preocupação e interesse pelas suas ações sobre o mundo, o qual se tem a impressão que anda à beira de desintegrar-se. A Medicina, no enredo, surge como a representante maior das ações negligentes dos homens sobre o mundo; é aquela que, quase sozinha, espelhará a degradação dos personagens. Espelhará a degradação dos homens, porque a partir do momento que ela (que nada mais é que a corporificação de homens) obtém poder de domínio da evolução genética, atinge-se um estágio avançado de controle e poder do homem sobre a natureza, e senão ainda o mais alto estágio de dominação, aquele que já é suficiente para tratar a Natureza, seus seres, inclusive, o próprio homem, de uma forma laboratorial (como objetos de testes), como seres qualquer; e o mais relevante, como elementos proporcionadores de dinheiro e poder político e ecônomico. Se o homem controla a evolução num sistema capitalista, ele o faz apenas com interesses monetários, a fim de ter monopólio político. Por fim, o controle da evolução é um estágio superior, senão o mais avançado e último, da submissão do homem ao poder e seu desejo de domínio político, econômico e social.

   Há nessa atitude, uma desconsideração irreversível pelo o que o homem é por definição: um ser moral. Desconsidera-se a característica distintiva, a qual se acha em potência, que reverteria todo o processo nefasto no qual o homem-Deus se embrenha (distorcidamente) desde os primórdios do Renascimento, quando descobriu a ideia do "homem-artíficie", o criador e portador do mundo. Nega-se, dessa feita, o exclusivo diferencial que o permite a não portar-se desarrazoadamente como Ângelo Marcos, Ana Clara, Bebel, Nando e Lúcio Nemésio: a moral. Entenda-a aqui não como a moral burilada pelas noções religiosas de pecado, por exemplo, mas a moral no seu sentido mais amplo e autêntico, o do elevado respeito e consciência humanas.  

   Ao comentar o próprio romance, João Ubaldo Ribeiro afirmou: " [...] é um livro que lida com a má administração do tempo que a humanidade passa na Terra. [...] Quis escrever um livro sobre a figura de Satanás". Curiosa a opção do escritor pela figura de Satanás, sobretudo se a relacionarmos com o que já foi dito acima sobre o romance. Para recordar a figura de Satanás, transcrevo a própria fala de João Pedroso, o peixeiro que iria escrever um livro sobre os perigos do domínio da evolução pelo homem, se Ângelo Marcos não o tivesse matado: "Por que Deus não redime Satanás? Porque é impossível redimir aquele que peca por si mesmo, pela sua própria degradação espiritual, aquele que teve a luz, o conhecimento e a oportunidade e, por si mesmo, lançou-se ao pecado, à inimizade com Deus e, consequentemente, com o Bem" (p. 122, da edição da Record/Altaya). As atitudes humanas, segundo visão de João Pedroso e do próprio João Ubaldo, acham-se semelhantes a de Satanás. Os homens, ainda que portando todo o conhecimento e oportunidade, agem, há milênios, para provocar a própria degradação. O alto poder que a Medicina detém atualmente e seu controle inescrupuloso crescente sobre a evolução, são apenas um dos estágios (avançado)  da degradação moral do homem.  O caminho para a degradação, encetado pelos homens, assim se constitui degradado por exclusiva opção e ação pessoais, atitude semelhante a de Satanás, caracterizado por João Pedroso. Se há Deus, Ele não tem nada com isso. A postura dele seria quase, quem sabe, se adotarmos a visão de um Deus punitivo de João Pedroso/Ubaldo, a do lagarto exótico que João Pedroso vê certa vez indo para sua peixaria:  portador de uma atmosfera de riso, que sugeria mofa, quase hostilidade.

   O romance de João Ubaldo torna-se universal e atemporal não pelo elemento hoje momentâneo do domínio da evolução pelo homem, mas pela consideração à opção perene de uma humanidade quase inteira pela sua própria degradação, sobretudo moral.

2 comentários:

Lívio disse...

Bruna, não conheço o livro. Aliás, não conheço o trabalho do João Ubaldo.

Sua postagem é um incentivo para que eu preencha a lacuna.

Bruna Caixeta disse...

Lívio,

eu conheço muito pouco do João Ubaldo, só mesmo este romance, o conto "O Santo que não acreditava em Deus" (que inspirou o filme "Deus é brasileiro" do Cacá Diegues) e alguns textos dele para o Estadão. Gosto do que conheço.

Que bom que a postagem acabou funcionando como um incentivo.

Obrigada pelo comentário e pela foto.

Abraços.