terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Contos (6)

A caminho de Damasco

Tudo o que acontece a ti foi preparado desde toda eternidade e a
trama das causas ligava há muito tua substância a este acidente.
Marco Aurélio, Meditações

Há algo de sempre em mim,
mas nunca sei bem ao certo o que é.
Lívio Soares de Medeiros, Algo de sempre

    Caso muito estranho aconteceu comigo, certa vez, voltando de carro para casa, numa estrada que sai da capital rumo a minha cidade. Diz-se que se deve aprender mais com as sinuosidades da vida do que com os livros. Isso é lá coisa de um certo Publílio Siro, ou Publílio Sírio - nunca sei ao certo o nome desse sujeito que foi vendido como escravo na distante república romana, e protegido do grande César, veja bem. Foi ele quem disse que o dia posterior é discípulo do anterior. Parece evidente? Sim, mas é que nunca somos discípulos da obviedade, pelo menos não o suficiente para compreender sua funda riqueza. Antes de contar a história, permita-me outra do mesmo Publílio: nada desejamos tanto como aquilo que não é consentido. Junte essas duas máximas do ex-escravo da Síria e terá uma ideia do que foi que me aconteceu, voltando de carro, na estrada, num fim de tarde. Era véspera de ano novo. Eu estava sozinho.
    Muito perto de um povoado, dois quilômetros no máximo, eu já devia ter visto: era um corpo estendido no chão, três ou quatro metros do acostamento. Tomei susto, coração desembestou, diminuí logo a velocidade, muito desconfiado que sempre fui, arremessando o olho daqui e dali, tentando adivinhar uma armadilha qualquer que me pudessem ter preparado. É que a gente toda me conta tanta notícia de assalto, de sequestro, de violência no meio de estrada, que metade do que receio deve ser fantasia dos meus pavores. Passei por ali devagarinho, quase parando, mas ao mesmo tempo disposto a uma desenfreada de emergência. Olhei o sujeito. Não era possível ver-lhe o rosto. Caído, de bruços, parecia morto, talvez? Busquei artifícios na minha própria imaginação ardilosa que me autorizassem o desprezo por esse incômodo. Olha, não me antecipe acusações. Tive medo. Você não teria? Medo não sei se é o termo exato, uma desconfiança, quem sabe, a suspeita corretíssima de que o homem é sempre o lobo do homem. Tolice. Lá vem a imaginação ardilosa inventando artifícios que me salvem de acusações possíveis. Foi medo mesmo.
    Toquei o carro, era melhor fingir que não tinha visto aquilo, como no incidente da queda ignorado pelo Jean- Baptiste Clamance, de Camus. Ah, a clemência, a bondade! Eu não tinha visto nada, claro. Por acaso alguém poderia provar que vi alguma coisa? Alguém haveria de me acusar de negligência, de não ter prestado socorro? Claro que não, ninguém me viu. É, mas quem decide praticar um mal encontra sempre um pretexto. Sabe de quem é essa frase? Publílio Siro. Já começo a lhe ter antipatia. Um pretexto não precisa necessariamente ser infame. Há bons pretextos. Sim, mas são pretextos. É, mas são bons. E eu tinha uma boa desculpa: aquilo era uma cilada, não sou idiota. Aumentei a velocidade, olhando o retrovisor, na certeza de que alguém sairia de um esconderijo, de que alguém frustrado teria percebido que não foi fácil me ludibriar. Acham que sou bobo? Menos de um minuto depois, um carro passou por mim numa velocidade espantosa, não sem antes ter jogado sinais nervosos de ultrapassagem. Dei-lhe espaço. Olhei. Era um bando de jovens loucos dentro de um carro pequeno, uns lunáticos alcoolizados. Teria relação com o homem caído? Não sei, não me interessa. Revi a imagem. Depois sentenciei, confiante: deve ser cachaça. Não vale a pena correr atrás de gente assim.
    Eu já voltava à velocidade de antes do episódio, quando comecei a diminuir de novo. Fui ultrapassado uma, duas, três, quatro vezes. Da última, um casal com dois filhos, gente de classe, com cara de quem voltava das férias na praia para festejar o ano novo com os parentes. Carro grande, bonito. Essa gente toda que passava por mim não tinha visto o homem caído lá atrás? Não era possível. Cachaça, repeti comigo. Não vale a pena. Bebem que nem uns condenados no fim do ano, e agora, isso. A violência na rua, essas coisas, não quero me envolver. Velocidade mínima, encostei, parei o carro. Cachaça, podia ser? O sol chegaria perto da linha, seria noite em pouco tempo.
    Voltei. Já quase alcançava um povoadozinho lá na frente, mas voltei. Devo ter andado uns três quilômetros de volta, parei o carro sem desligar o motor, o sujeito continuava lá. Olhei, investiguei, procurei vestígios de sei lá o quê. Ninguém por ali. Umas árvores maiores poderiam esconder um bando de assaltantes lá atrás, quem sabe? Mas não tinha carro. Desliguei o motor, não era possível que alguém pudesse ficar ali tanto tempo, sem ninguém do lado, na mesma posição de sempre. Desci, desconfiadíssimo, como sempre fui. Não posso ver minha sombra e já penso que ela tem intenções segundas, terceiras. Desci do carro, cheguei ao corpo. Disse qualquer coisa, não sei ao certo que tolice eu devo ter dito, e fiquei ali, patético, esperando resposta. Meu Deus, estaria morto?
    Fui até ele: não parecia morto, a respiração era intensa. Virei-lhe o corpo, e vi, para o meu espanto: não era um homem, era uma moça. Mas eram roupas de homem, tudo de homem, parecia mesmo um homem. Sim, mas era uma moça. E jovem, muito, muito jovem. Menor de idade, arriscaria dizer. Não, acho que passava dos vinte. E pior: machucada, terrivelmente machucada. Tinha um corte horrível na cabeça, que sangrava muito, dois hematomas na face, um ao lado do olho direito, outro perto do queixo, outros hematomas pelo corpo, e alguma coisa nos olhos, não sei o que era. Se eu dissesse que me dei conta dos ferimentos todos antes de ver qualquer outra coisa, estaria mentindo. Vi, antes de tudo, que a mocinha era bonita. Não, bonita não, é pouco. Certamente teria me chamado a atenção em qualquer outra circunstância menos trágica. E era hora de pensar nisso? Desculpa, posso estar sendo inconveniente, mas... e pensamento lá a gente controla? Era bonita, que diabo. Nem os ferimentos lhe teriam desmanchado a beleza. Sei que pode soar ainda mais impróprio, mas a boca... não sei, parecia a deliciosa bocca baciata de Dante Gabriel Rossetti - claro, não com o olhar perdido no infinito e o cabelo ruivo e sarará de uma donzela do Santo Graal. Lembrei apenas a boca. Perdoe, mas é que sou professor de Teoria da Estética e de História da Arte na universidade, sabe, e as coisas me veem assim, não posso ver gente bonita e já vou me assanhando com filosofias. A beleza tem força tão extraordinária sobre mim, que dela sou um perfeito escravo. Mas não pense que fiquei ali com ares meditativos, fazendo pose cretina de contemplação, sem prestar socorro à menina. Isso eu estou pensando agora, você sabe que pensamento, além de intruso, não gasta um décimo de segundo para nos importunar e voltar a suas raízes clandestinas. A bocca baciata da mocinha tantas vezes pintada pelo Rossetti: não é que parecia mesmo? Uma cereja madura para o beijo. Isso eu não pensei lá na hora, é claro.
    Olha, perdoe. Pensei, sim. Se isto é para ser uma história de confissões, pensei. E digo ainda: pensei outras coisas que não quero publicar. Sem escândalos, deixa de ser hipócrita, pensamento é pensamento, atitude é atitude. Sabe, é que fiquei perturbado pela imagem, quando puxei o corpo, e os seios da moça vieram à frente da camisa, a camisa masculina que ela usava, com dois botões arrancados em cima. Se fora vítima de violência - é lógico que tinha sido, um assalto, um sequestro, não sei - numa luta possível, os botões se foram. Cobri a nudez em parte revelada. Mas antes disso, permita dizer: belos seios. Costumo confessar muitas coisas a mim mesmo, eventualmente a outros, quando sei que me têm olhos compassivos. Uma vida sem exame não tem valor. Sabe quem foi quem disse isso? Não, não foi Publílio Siro, depois eu volto àquele desafeiçoado. Foi Platão. E por falar em Platão, lembrei-me do anel de Giges, na sua república fantasiosa. Calma, a moça bonita não vai morrer, nem corre risco de vida. Pelo menos não agora. E é claro que não fiquei pensando no anel de Giges, enquanto deveria estar prestando socorro à jovem, em hora dramática. Estou pensando no anel agora.
    Bem, perdoe novamente: pensei, sim. Como é que certas lembranças acometem nossa consciência, assaltando a ingenuidade de nossos princípios morais? Não é monstruoso, é apenas humano. Mas vamos lá, enquanto a mocinha não corre risco de vida, conto-lhe rapidinho: Giges era um pastorzinho pobre que, junto dos outros, deveria prestar contas de seu trabalho a um rei. Certa vez, por uma imprevisibilidade maravilhosa, encontrou um anel que o tornava invisível diante dos homens. Convenceu os amigos pastores a ser nomeado dentre eles o porta-voz que prestaria contas ao rei. Foi ao reino, conquistou as graças da rainha e, por meio dos artifícios da invisibilidade que o anel lhe trazia, acabou por assassinar o monarca e assenhorear-se do reino. Que coisa, não? E Giges era um sujeitinho tão bom, pastor honesto, humilde. Sim, mas com o trunfo de ser invisível e fazer o que ninguém vê e o que ninguém pune, quem é que consegue ser bom? Honesto eu também sou. Se dessem esse anel ao homem mau, ou ao homem virtuoso, no fim, todo mundo matava o rei. Garanto. Mas o que tenho eu com o anel de Giges? Quanta importunação, esses pensamentos. É que me ocorreu... aquele corpo... Ah, não sei, deixa para lá. Veja, não quero matar rei nenhum. Eu jamais ficaria invisível mesmo, nem agora, na frente de um suposto leitor. Ou ficaria? Ah, pare de me olhar, estou invisível.
    Mas deixe de uma vez essa arenga e vamos logo socorrer a moça, que isso é assunto de urgência. Caso nunca tenha estado numa posição como essa, garanto-lhe: carregar um corpo desfalecido não é coisa fácil. Uma bailarina franzina se torna um corpo pesado, quando desfalecida. E a mocinha não era nenhuma bailarina, tinha o corpo vigoroso da juventude, uma robustez de boa saúde que nem lhe digo. Quando fiz minha primeira tentativa, senti que, embora abatida de forças, a moça tinha consciência, mexeu os braços, levou as mãos aos olhos, quis dizer uma coisa, parecia não fixar os olhos em nada, com ar estranhíssimo.
    - Seu pai... seu pai está te esperando - ela disse, por fim, numa voz entrecortada, balbuciando outros pedaços de frase sem sentido. - Seu pai... seu pai...
    Delirava.
    - Está bem, moça, depois a gente vai procurar meu pai. Vou te levar para o hospital, está certo?
    - Não... seu pai está te esperando... agora.
    Fiz nova tentativa de erguer o corpo, ela agarrou minha mão, tinha força demais para alguém em condições assim. Seu pai, ela continuava dizendo, seu pai... E essa agora, meu Cristo! Como dizer a ela que não tinha pai nenhum esperando. Ou será que era o pai dela? Pensei em fazer força redobrada. Mas por que diabos a menina usava roupa de homem? De longe, era um homem. De perto, tomava as feições de um ser hermafrodita: parecia um mocinho, não sei, talvez pelas roupas, mas ao mesmo tempo, era uma moça. E moça tão bonita. Sei que tive tempo suficiente para tentar desvendar o mistério, a jovem nos meus braços, os peitos lhe saindo de novo pela camisa. Constrangedor, não estou acostumado a isso. Um médico faria melhor, por certo. Vai dizer que pareço doido, mas é que me veio então um medo esquisito de estar carregando um corpo de outro mundo, um ser mitológico, sei lá, um feitiço, uma sereia. Lâmia. Acho que era a Lâmia, uma confusão de medo e sedução ao mesmo tempo. Lá venho eu com essas imagens que brotam e fervilham na minha cabeça descompensada. É a Lâmia que está na frente das águas, com seios nus, olhando o próprio reflexo.
    - Nada... não estou vendo nada - ela tentou dizer, enquanto eu me esforçava para ter o corpo dela nos braços.
    De fato, os olhos tinham sido lesados de alguma forma, coitada. Olhar parado, assustado, sem se fixar em nada, parecia estar totalmente cega. E estava, depois eu pude entender. Tentei dizer a ela que ficasse tranquila, tudo ia dar certo. Nem eu acreditei nisso, essa história não podia dar certo. Perguntei-lhe o nome, não soube dizer. E a infeliz não parava de falar do meu pai, que meu pai me esperava, que me esperava, que meu pai não sei o que mais. Pedi a ele que colaborasse, afinal o corpo era pesado e a moça ainda parecia se recusar a uma ajuda. Mas carreguei, por fim, e coloquei no carro a Lâmia misteriosa, os seios teimando em se revelar, na falta dos botões da camisa, e o corpo todo se esparramando no banco traseiro do carro, me deixando quase convulsionado. Uma luta.
    Depois, consegui localizar os documentos, numa carteira que ela trazia ao bolso. Uma carteira de homem. Antes que desse partida no carro, ainda pude ler sua identidade: Oriana Silva de Pennaforte. Idade? 20 anos. Nome curioso, que mãe teria sido essa a pensar uma coisa tão estapafúrdia? Mas não deixa de ter poesia. Pode não concordar, meu caro, mas Oriana é bonito. Se não se lembra, Oriana é a amada do cavaleiro Amadis de Gaula, no romance quinhentista das letras portuguesas. Não sei se a mãe da mocinha sabia disso, decerto que sim. Sou dado a devaneios, você já terá notado, e não me foi possível evitar esta lembrança: a do cavaleiro que salva a donzela ultrajada, perdida num ermo dos bosques da Península Ibérica. Sou incorrigível. A belíssima Oriana, filha do rei Lisuarte, me atropelou subitamente a fantasia, e eu, este quarentão aturdido e amigo da paz, se fez, de um segundo a outro, o verdadeiro donzel do mar: "amiga, este é um donzel que vos servirá". Olha que negócio de gente doida. Sei que me presto à galhofa. Essa moça-lâmia, ainda balbuciando coisas que eu não entendia, me agrediu moralmente. Um encontro fatal, fantasiei. Esse negócio de cancioneiro de amor: em tal ora vos vi que nunca dormi nada. Por que me agredia moralmente? Não sei, havia nela um mundo desconhecido, embora apenas lhe intuísse a natureza e a história antes do nosso encontro. Teria sido vítima de assaltantes, ou de outras violências que correm por aí? Seria pobre, seria rica? Seria uma desclassificada, vítima de preconceitos? Não sei, mas minha missão era socorrer a infeliz, fazer o meu papel de bom samaritano que nunca fui. Não estava eu há pouco, há exemplo de Clamance, arranjando pretexto para não socorrer uma vítima? Não sou bom, muito menos samaritano. E para agravar meu currículo, não teria tido eu há pouco o estranho ímpeto de beijar aquela boca, segurando o corpo que me pertubou os sentidos? Amiga, este é um donzel que vos servirá.
    Foi longo, asfixiante, o caminho que nos levou até o hospital da cidade, que deveria estar a uns 40 quilômetros, pelo menos. No povoadozinho ao lado, não poderia haver recurso. Entrei em pânico, pensei que a moça morreria no meu carro, e eu não saberia como explicar isso à polícia. Mas quem foge ao julgamento confessa seu crime: Publílio Siro. Contudo, não fugi, não tinha crime nenhum. Liguei em casa, do celular, ninguém atendeu. Liguei para o meu filho, informei que tinha havido uma encrenca no meio do caminho, que possivelmente não chegaria tão cedo em casa, que ele avisasse a sua mãe. Chateou-se, era passagem de ano novo. Mas eu não poderia deixar Oriana no hospital, simplesmente, sem que tivesse alguém a lhe fazer companhia, a tomar providências, embora ela não fosse uma indigente, não tinha cara disso. Se eu já estava envolvido, que fosse até o fim. Não foi tão rápido o atendimento no pronto-socorro, como eu esperava, e ela sangrando na cabeça, agora menos, porque eu tinha tentado estancar o sangue com uma toalha de mão que tinha no carro. E imagine que, mesmo no hospital, não sei quanto tempo depois, ela ainda continuava com a conversa de que meu pai estava me esperando. Pobre moça, não sabia o que dizia, delirava, por vezes se exaltava, ficava fora de si, não dizia coisa com coisa. Foi levada a uma maca, mas sem atendimento. Fiquei ali, como se fosse o pai, segurando-lhe a mão, tentando dizer uma coisa ou outra, olhando o sangue que agora quase não escorria mais.
    Apesar dos nervos expostos (ela não ficava quieta, queria me dizer uma coisa sobre meu pai a toda hora), e afora os ferimentos todos, posso jurar que o semblante de Oriana parecia não condizer com a situação trágica. Depois, na cama, esperando atendimento, e mais tarde ainda, já tranquila, aquietados os ânimos, não me pareceu mais uma ameaça, ou agressão moral. Bela e serena, parecia quase reconfortante a sua presença, trazendo a mim - justamente a mim - a ambição secreta e inexprimível de ser o seu pai, ou seu amante, talvez, num jogo ambíguo de afetividades. Digo isso porque era bonita? Quem sabe, não sei, acho que não. Um rosto bonito é uma recomendação silenciosa. Gostou da sentença? Adivinha de quem. Publílio Siro, esse desafeto que anda me dizendo coisas demais. Foi também ele quem disse que a verdade imposta pelo mais forte é uma mentira. Contei uma mentira, sim, e isso deve ser uma imposição do mais forte, o escritor, que seduz o mais fraco, o leitor, pela arte da prestidigitação. Aliás, ando escondendo coisas demais. Só fui acometido por esse enleio todo porque a moça era bonita. Fosse feia, estaria preocupado apenas com o diabo do médico que não chega. Mas... bonita, apenas? Estou certo de que isso não me traria entusiasmo. A óbvia beleza já por aí se encontra, banal e leviana, a preço de banana, com o perdão dos dodecassílabos e da rima imprevista. Para além dos olhos, sei compreender a beleza oculta. A beleza verdadeira traz consigo uma tristeza escondida. E a beleza é de fato uma recomendação silenciosa, pense nisso. A capacidade de emocionar-se profundamente com a beleza do outro é uma das mais nobres atividades do espírito, mas não deixa de ser injusta: o belo nada fez para que fosse belo, e o amante do belo, solapado e arruinado pelo destino, igualmente nada fez para que assim o fosse.
    Mas vamos cuidar da mocinha, que o caso continua urgente. E quero dizer outra coisa: é lógico que tomei providências, em vez de ficar lá, pensando essa filosofia ordinária que ando escrevendo. Avisei à polícia, e em poucos minutos, chegaram os pais de Oriana. Uma gente esquisita. Quando chegaram, não lhe foi dado ver a filha de imediato, ela já tinha sido atendida. Constrangido, muito embora - sou sempre sem dedos para esse tipo de coisa - conversei com a mãe (chamava-se Ana), contei o fato, me apresentei, me dispus a ajudar de alguma forma, e disse o que se diria numa hora como aquela.
    - Agradeço muito o senhor, seu Saulo - a mãe se limitou a dizer.
    Bem, diante dos arranjos finais, e na presença do pai e da mãe ali, entendi que meu papel poderia chegar ao fim, mas confesso que de forma alguma não me senti disposto a abandonar Oriana junto dos dois. Abandonar? Mas não eram os pais? Logo não estaria em casa? Sim, eram os pais e logo estaria em casa. Eu disse a eles, no entanto, que ficaria, quem sabe poderia ser útil em alguma coisa, quem sabe a polícia poderia precisar do meu depoimento. Mentira, já tinha dito tudo a eles. No fundo, tive uma necessidade compulsiva de rever a menina, saber o fim da sua história.
    Noite alta já, os pais aguardavam no corredor. E eu ao lado deles. Parecia o tio. Ficamos em silêncio.
    - Suponho que tenha sido um assalto, pelas circunstâncias - eu disse, por fim, depois que já havíamos ouvido do médico umas explicações parciais. O pai, de nome Orisvaldo, não me deu atenção. Esperei uma confirmação que não veio. Silêncio.
    - Isso é queima de arquivo - ele disse, por fim, puxando um cigarro do bolso.
    - Você sabe que não pode fumar aqui - a mãe disse, com rispidez. - E para de falar essas coisas, a gente não sabe.
    - Essa menina é uma vadia, seu Saulo. Mulher de rua, faz de tudo.
    - Para com isso, Valdo. Vai fumar lá fora.
    - Já fiz de tudo o que o senhor imagina - ele insistia. - Acha que isso aqui é fato incomum?  Acontece toda semana, já tirei da boca de fumo, já tirei da bagunça, já busquei não sei onde mais. Isso é toda semana, quase todo dia.
    - Valdo, vai fumar lá fora. O rapaz aí não tem nada com isso.
    - Essa desgraçada, meu amigo, não aceita ser pobre. Acha que dinheiro dá em capim, quer ganhar dinheiro fácil. Pensa que não trabalho? Pensa que não me dedico aos filhos? Pensa que não estou aqui, correndo atrás dela, um dia depois do outro, que nem uma besta? Olha... uma vagabunda. Vende, consome, se entrega, se dá inteira, não passa de uma vadia, se quer saber.
    - Valdo, vai pro inferno. Vê se fuma lá fora.
    - Uma desgraça essa menina...
    - Valdo - a voz dela ainda soava incrivelmente contida.
    Ele deu um estalo baixinho com a língua, olhou para a mulher, fez uma careta de desprezo, acendeu o cigarro e saiu. Eu não quis perguntar mais, seria muito indiscreto. Pensei no que ele havia dito. Fiz um longo silêncio respeitoso. Por certo não tinha direito a qualquer outra intervenção. A mãe, intimidada, calou-se, evitando-me os olhos. Depois de uns minutos, fui forçado a abafar uma risada, inaceitável para o momento, por ter entendido uma coisa: o sujeito se chamava Orisvaldo e a mãe era Ana; daí Oriana. Sabe esse negócio de misturar o nome do pai com o nome da mãe e inventar um terceiro elemento, que em geral sai meio troncho e carente de sentido e sonoridade? É, pelo visto a mãe não conhecia a donzela da história quinhentista do romance português. Meu Amadis de Gaula foi se consumindo que nem a fumaça do cigarro de Orisvaldo, até sumir de vez. Amarguei uma gota de decepção, confesso. A princípio, achei ridículo; depois pensei que a mocinha continuava sendo Oriana assim mesmo. De que importa como nasceu um nome? Decerto haveremos de achar feio o nome mais belo, apenas porque sua origem remonta a um episódio trivial e vulgar, senão mesmo irrisório? Mas confesso que minha empáfia épica inicial (amiga, este é um donzel que vos servirá) acabou se esmaecendo, e os meus cavaleiros e donzelas foram se desmanchando na poesia, para dar espaço à realidade prosaica, bem mais carente de encantos.
    Uns minutos depois, um médico anunciou um estado grave, falou de hemorragia, depois falou de uma cegueira possivelmente irreversível, e não sei o que mais. Dona Ana não se comoveu como eu esperava, fez silêncio e foi buscar o marido que baforava aos ares, fora do hospital. Confeso que tive um sentimento de perda: Oriana jamais me veria, então? Cegueira irreversível? Mas que diabo esse pessoal tinha feito com ela? Por que machucaram tanto a menina? E por que estaria lá, abandonada na estrada? Por que usava roupas de homem? Por que tanto enigma? Sinto muito, meu caro, mas não tenho resposta para nada disso, e receio que não terei até o fim desta narrativa. Se, portanto, espera o desenlace desse mistério, desista. Não o desvendei, por mera falta de oportunidade, e agora não o trago comigo.
    Não passei a noite lá com ela. Estive com a família, fizemos os brindes de ano novo. Mas o pensamento ficou disperso, concebendo a hipótese de que Oriana pudesse morrer na noite mesma. Mas e eu com isso? Que ríspida ponderação, não vamos buscar os extremos. Claro, haveria em mim uma consideração mínima de humanidade, essa humanidade que é solidária com o outro, o lado bom samaritano de todos nós. Tudo bem, a verdade imposta pelo mais forte é uma mentira. Eu queria ver a menina de novo, saber como ela estava, olhar para ela, conversar, quem sabe, conhecer sua história, seu drama, seus dissabores, fazer as honras de um pai... ou de um amante. Porque era complicado confiar nessa gente esquisita que cuidava dela. Vou lhe dizer: queria mesmo era rever a beleza, rever os seios, se possível. Cretino, claro que não era possível, muito menos sensato. Pensa que ela ia desfilar na passarela, ou fazer exposição do corpo no hospital, que nem manequim de loja, para os seus caprichos?
    Pus-me a pensar na morte, e confesso que me vi atônito, quase em desespero, ao considerar que a menina podia morrer. Uma moça vadia, mas o que tem isso? Decerto não haveria nela um traço qualquer de nobre nobreza que lhe salvasse da condenação preconceituosa? E se morresse a mãe? E semorresse o presidente da república, seria diferente? Pense na meditação de Marco Aurélio: "tanto Alexandre da Macedônia como seu cavalariço tiveram o mesmo destino com a morte: ou foram reabsorvidos no mesmo princípio gerador do Universo ou se dispersaram entre os átomos". Mas uma morte prematura, a jogar seus dados em corpo tão belo, que estupidez seria. E se fosse um corpo feio, não teria problema? Não é isso, vê se me entende.
    No dia seguinte, de manhã, não esperei muito, fui ao hospital. Meu filho, mais tarde, me ligou. Inventei subterfúgios.
    - Pai, mas hoje é a convenção do partido.
    Convenção do partido? Ah, meu Deus, é mesmo. Havíamos de fato marcado a reunião no começo da tarde, mas eu sabia que iria demorar muito mais do que uma manhã. Ah, dane-se a convenção do partido. Que diferença faria a minha opinião para aqueles contendores intrépidos?
    - Meu filho, olha... eu estou indo, não demoro muito. - Mentira. Falei apenas para me ver livre dele. Não estava interessado em discussão política. Acho que nunca estive totalmente. Como nas discussões religiosas. Não vou à igreja há mais de duas décadas.
    Dona Ana e seu Orisvaldo não passaram a noite por lá, chegaram quase na hora do almoço. Minha preocupação parecia mais viva do que a deles. Tínhamos notícias melhores, Oriana já estava plenamente consciente, não havia qualquer risco de vida, mas o problema da cegueira ainda persistia. Pudemos, enfim, fazer-lhe a visita. Mal chegaram, os pais iniciaram uma discussão estúpida, não sei ao certo agora a raiz da conversa, e devo ter tido o ímpeto de acabar com a briga, porque o pai voltava ao problema de uma queima de arquivo, dizendo que essa gente não perdoa, que Oriana era sempre culpada de tudo, que coisa pior poderia acontecer dali para frente, e não sei o que mais. Não era hora disso. Mas dei ouvidos, em silêncio. Não era assunto que me competia. Diacho, o que eu estava fazendo lá?
    - Filha, esse moço aqui te salvou ontem lá na estrada - a mãe disse, por fim, lembrando-se da minha presença. Voltei a mim mesmo. Quis protestar, dizendo que não tinha exatamente salvado a moça, quem me dera pudesse ter feito coisa melhor. Tomei-lhe a mão, com respeito:
    - Oi, Oriana. Eu sou Saulo.
    Ela não respondeu, de início. Tinha os olhos parados, parecia aterrorizada pela sensação de não enxergar nada, mais ainda pela possibilidade de não voltar a enxergar nunca mais. Alguém tinha lhe dito, no entanto, que aquilo era temporário, em dois ou três dias, tudo voltaria ao normal. Desejei profundamente que assim o fosse, e nada mais podia fazer por ela. Continuei em silêncio, mas apertei-lhe a mão com tenuidade, esperando que o gesto lhe dissesse alguma coisa. Não sei quanto tempo ficamos assim, o suficiente para que me deixasse constrangido.
    - Oi - ela respondeu, por fim.
    Tive o ímpeto quase irresistível de perguntar a ela por que, no dia anterior, falava tanto de meu pai, que eu precisava ver meu pai com urgência, mas acabei desistindo, supondo evidentemente não ser a hora: uma informação como aquela, dita em momento de delírio, poderia ser reveladora e desconcertante para uma situação já por si tão delicada. Não soltei sua mão, primeiro porque tinha um aconchego que não sei agora explicar, e segundo, porque ela própria parece ter sentido o mesmo. Um aconchego? Não sei se a palavra cai bem. Pode soar a sentimentalismo. Não quero momentos marcantes e lágrimas ternas e compassivas neste enredo. A moça era uma estranha, não passava disso, e a ideia da vadiagem não me saía da cabeça, embora no fundo eu recusasse o que o próprio pai dizia. Recusar como? O que sabia eu da vida dela? Mas suponho que ela tenha sentido a mesma e estranha sensação de aconchego, e assim o julgo, por uma reação curiosa que ela teve de me segurar a mão com uma força incomum, porém comedida, sem grandes arroubos. Ficamos com as mãos dadas.
    Sabe o que me ocorreu? Raptar a moça e sair dali, viver ao lado dela, servir-lhe de pai nos momentos difíceis, mandar essa gente toda aos diabos. Servir de pai? Não sei, não garanto a autenticidade desse sentimento. Já andei dizendo outras coisas lá atrás, de que me arrependo. Devo estar confundindo sua cabeça com essa confluência, com esse turbilhão de sentimentos contraditórios. Junte-se a bocca baciata do Rossetti, com a Lâmia e, por fim, com esse meu sentimento paterno, e teremos o quê? Teremos o quê? Hein? Diga aí. Teremos a figura da Epístola aos Pisões, de Horácio: uma cabeça humana ligada a um pescoço de cavalo, com penas variegadas, de tal modo que a parte superior da mulher formosa termine num peixe horrendamente negro. Mas não será esse o retrato da consciência humana?
    E sobre o meu suposto instinto paterno, digo-lhe: ah, os filhos, os filhos. No fundo, acho que somos uma espécie de Pigmaleão aos nossos rebentos: faça-lhes o molde, capriche no entalhe, seja um perfeito artista, dê uma disposição de ânimos e virtudes, e tudo sairá como desejas. Quero crer que isso seja verdade. Os pais podem estar errados, mas... será que posso lembrar uma outra máxima de Publílio Siro nesta história? Prometo que é a última. Diz ele: ama os teus pais, se são justos e honestos; caso contrário, suporta-os. Eu poderia entalhar de novo a menina, poderia fazer dela uma estátua a meu gosto, o equilíbrio perfeito das formas e dos gestos. E depois eu teria o quê, hein? Teria o quê? A moça formosa com rabo de peixe? Por essas e outras, meu caro, é que desisti de raptar a menina.
    Naquele dia, não fui à convenção do partido. Passei a tarde toda com ela, mas não trocamos meia dúzia de palavras. Deram-lhe um calmante, ela dormiu por horas a fio. E quando acordada, limitava-se a me responder com monossílabos, quando eu perguntava alguma coisa, e fazia o mesmo com os pais.
    Oriana, coitadinha, não foi dessa vez que ela morreu. Nem ficou cega. Saí do hospital no fim da tarde, e no dia seguinte, ela própria já tinha ido embora. Não a vi mais, por muito tempo. E pensei que nunca mais a veria.
    Fim da história? Não.
    Saudável, de olhos tristes, semblante lindo a sugerir blandícia, e soltando baforadas de um cigarro ordinário, encontrei-a três meses depois, imaginem, numa esquina, perto de um ponto de ônibus, em local bastante suspeito da cidade. O que é que eu fazia por lá? Provoquei o encontro, se querem saber. Provoquei mesmo, uma coisa premeditada. Mais que isso: investiguei seus passos, busquei informações sobre ela, rastreei as possibilidades todas para levar a cabo nosso encontro. Corri perigo, até. Não era qualquer um que passava por um bairro assim, uma hora dessas. Mas não pensem que ela parecia essas moças de programa com roupas indecentes, com cinta-liga, de rendas e outros acessórios, que nem essas criaturas que vemos por aí em filmes e literaturas. Usava, sim, uma saia muito curta e uma sandália que lhe dificultava os passos, nem parecia roupa dela. Mas, bonita. E como é que eu podia encontrar-lhe ainda nos olhos uma inocência que estava estampada, evidente, a despeito dos demais elementos que compunham seu corpo, uma alma extraviada e deixada à rua pelos homens? Que ofício tão miserável era aquele para tão nobre espírito?
    Deve estar se perguntando onde está a nobreza desse espírito, que não aparece. É, não sei. Oriana é dessas pessoas que conhecem o equívoco do mundo e di si mesmas. Quem é que me trouxe a esta terra alheia?, perguntará o judeu na desventura da diáspora. Não vim para julgar os homens, cada um de nós está aqui de passagem, e o meu erro será o seu erro, e o seu acerto será também o meu acerto. Sabe, quando era criança, sempre fui tocado pelo infortúnio das mocinhas dos contos de fada, que são obrigadas a um ofício pouco digno de suas grandezas. Limpam o chão, lavam paredes e latrinas, quando na verdade são princesas. Engraçado, não? A nobreza deve estar no espírito, em algum lugar que não vemos. Oriana, no primeiro dia em que a vi, caída lá na estrada, todo mundo passava por ela e fingia não ver o rapazinho que, por certo, bebera muito no último dia do ano. Eu mesmo fingi. Fora tão mais fácil fingir. A linda pastora Joana, de Bernardim Ribeiro, que tinha o espírito enobrecido e medíocre ofício de guardar patos num rancho alheio, olhando-se no reflexo das águas do riacho, dizia que era formosa e mal empregada. Formosa e mal empregada, era a donzela Oriana, a quem eu deveria servir. Amiga, este é um donzel que vos servirá. Encantado, minha ama.
    Encantado.
    Quanto ao meu encontro premeditado, na esquina perto de um ponto de ônibus, digo-lhe o que foi que fiz, o que foi que pensei. Passei por ela, acompanhada que estava por uma amiga, inicialmente fingindo não tê-la visto (era a segunda vez que fazia isso em tão pouco tempo!), depois voltei dois passos. Olhei os olhos tímidos. Olhei mesmo, sem pudor, buscando o fundo deles. Estava disposto a muita coisa, a raptar a mocinha, levá-la para um lugar que não sei onde. Raptar a menina, vejam só! Era a segunda vez que me assaltavam tais pensamentos. Ingênuo que sou. Vontade imensa que tive foi de levá-la para casa, pensar-lhe as chagas morais, os agravos, colocá-la no colo, dar a ela um banho longo e quente, banhar os seus pés e beijá-los, e depois ungi-los com alfazema, alecrim, citrus ou cravo da Índia, e depois calçar-lhe um par de sandálias, para que fosse uma soberania além deste mundo. Mas este mundo mesmo, foi ele que me despertou. Ela ficou intimidada diante do olhar tão incisivo, baixou os olhos, depois os atirou a mim de novo:
    - Quer um programa, moço?
    Não fui homem para dizer coisa alguma. Eu poderia fazer um programa, sim. Poderia. Não poderia? Já não lhe havia desejado o corpo? Não tinha tido a ânsia de ser invisível e, com esse truque infantil, esconder meus erros dos demais homens? Não tinha desejado secretamente beijar a bocca baciata pintada pelo Rossetti ou rever os seios de Lâmia involuntariamente mostrados? Então. Tudo aquilo se me oferecia agora, provavelmente a custo irrisório. Teria sacado ali umas duas ou três notas do bolso e dado a ela, querendo conhecer uma volúpia que me havia assaltado certa vez a consciência atormentada. Nossos objetos de perda são também nossos objetos de redenção (Publílio Siro? Não, essa é minha mesmo). Perdi as forças todas, arrependi-me de estar ali, renunciei a meus planos de rapto. Mas confesso que a uma única coisa eu não pude resistir: assim mesmo, em silêncio, tomei-lhe a mão, por uns segundos apenas. Um aconchego, eu poderia dizer, não fosse esse meu receio de que o gesto soasse agora a sentimentalismo inútil. Um aconchego para ela também, talvez, pois que não se opôs à minha mão, não apenas conhecendo, mas sobretudo reconhecendo nela, quem sabe, as origens remotas de uma ternura.
    - Não - eu respondi, por fim. - Não quero um programa. Fica para outra vez.
    Quem me visse entrando no carro, teria reparado que havia esquecido lá dentro uma rosa que levara para a ocasião. Numa outra oportunidade eu entrego.

NEPOMUCENO, Luís André. Histórias abandonadas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011, pp. 147 -165.

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