quarta-feira, 20 de julho de 2011

O túnel


"O túnel" é uma das cinco novelas que compõem o livro A Vida Real (1952) de Fernando Sabino. Nela, há uma linguagem diferente daquela pela qual o autor é mais lembrado. Isto é, Sabino abandona a sua característica percepção do menino e ingênuo sobre o mundo, encontrada em romances como O grande mentecapto e O menino no espelho, por exemplo. Ele entrega voz a um narrador que já carrega o peso dos dramas experimentados unicamente na fase adulta, como é o caso dos advindos de conflitos conjugais, assunto da novela em questão.

A novela inicia-se com alguém gritando e avisando que uma mulher entrará num túnel para se suicidar. Em seguida, uma multidão entra no lugar para impedi-la, mas não consegue achá-la. Neuza, a esposa do narrador, é quem primeiro a vê, inteiramente presa aos cacos de uma vitrina. Teria a mulher tentado suicídio, estranhamente, atirando-se nas vitrinas que ladeavam o túnel? Ou, posicionando-se na frente de um carro, teria sido lançada aos vidros? A dúvida fica irresolvida e a urgência de salvar a moça faz com que se concentrem apenas em retirá-la daquele lugar. Neuza logo se responsabiliza por cuidar da acidentada. Com a ajuda do marido, leva-a ao hospital. Depois, sabendo que a moça morava sozinha num apartamento e que não tinha família, julga ideal levá-la para sua casa e do marido para se recuperar sob os cuidados de alguém. A moça, depois de um pouco melhor, conversa somente em inglês, apresenta-se como uma irlandesa chamada Magda e acaba tornando-se muito amiga de Neuza. Passa quinze dias na casa do casal. 

O narrador, que, no momento de salvar a acidentada, teve bastante iniciativa e concordou com a esposa em levá-la para sua casa, passa a se incomodar com a solicitude e desenvoltura da esposa para cuidar da moça. E, depois de ver que ela já se recuperara e já se hospedava na sua casa sem propósito, começa a se incomodar com a sua presença. Então, cada vez mais, age com grosseria com Magda e tem vontade que ela vá embora. Até porque, como advertia o pai, abrigar aquela mulher desconhecida poderia virar caso de polícia, dada a circunstância em que foi encontrada. Mas, ao contrário da sua esposa, que tinha desenvoltura e independência para lidar com o caso, o narrador tem atitudes que provam ser ele incapaz de resolver a situação e por fim ao seu incômodo. Por isso, ainda acaba sendo vencido muitas vezes pelo aborrecimento, até atingir o limite da paciência e conseguir pedir que a moça fosse embora. De imediato ela não vai, e acaba é por travar laços mais fortes com a família, inclusive ganhando a entusiasmada simpatia dos seus filhos. Esta novidade faz com que ele se reconheça muito grosso, e, por consequência, passa a se sentir mais culpado pelo destrato com a moça. Decide, então, numa noite, procurá-la para pedir desculpa pelas grosserias que vinha cometendo. Ao conversarem, ele se justifica com um "espero que você me entenda" e tudo acaba com ele sendo beijado pela moça. 

A partir de então, o motivo real do incômodo com Magda, para o leitor, passa a ser mais nítido e se confirma: o narrador queria que ele e a irlandesa se distanciassem porque havia se apaixonado por ela, em casa, entre a presença da mulher e dos filhos. No dia seguinte à conversa dos dois, a irlandesa vai embora. Daí em diante, o narrador é mais martirizado pelo seu sentimento, chegando ao ponto de deixar esquecido o trabalho e querer sair da cidade para apenas ficar no seu refúgio: uma montanha (localizada acima do túnel), onde vivia, em sonhos, a realização do relacionamento com Magda. 

Passados alguns dias, ele volta a ver a irlandesa. Ele a encontra em sua casa, conversando com a esposa. Não conseguindo conversar com Magda, tranca-se em um dos cômodos da casa e adormece, sendo despertado com  o pedido da esposa para que ele levasse a moça embora. Inicialmente negando com agressividade o pedido, termina por levá-la, só que ao invés de conduzi-la até o apartamento, a leva para a montanha, onde tinha seus sonhos, outrora irrealizáveis. 

Por fim, os amantes deixam a montanha para finalmente buscarem o caminho do apartamento da irlandesa. O caminho para se chegar até ele deveria passar inevitavelmente pelo túnel. Quando os dois estão se aproximando dele, a moça tem um breve momento de desespero e começa a chorar, mas se recompõe e serena de imediato. Decide sair do carro e entrar no túnel sozinha. Ao entrar, um homem grita que uma mulher iria se suicidar. Nesse momento, a história parece voltar a seu início, mas o narrador, desta vez, quando sai do carro e entra no túnel, não acompanha a multidão que se detém para ajudar a moça, passa adiante, e encontra o outro lado do túnel.

A narrativa delineia os conflitos e as opressões pelos quais passa um membro do casal quando se apaixona por outra pessoa, mas por causa das regras sociais de moral, se vê obrigado a dissimular e reprimir o sentimento. O resultado: apaixonar transforma-se num jogo de maltrato, porque o sujeito se fere e prende na tentativa, por vezes inconsciente, de se enganar e também tentar convencer o outro do contrário de tudo que realmente passa. Um exemplo dessa situação é o que acontece quando o narrador começa a se incomodar com a desenvoltura da mulher ao lidar com o caso do acidente. Ele acredita, por um momento, que sua esposa adquire uma atitude nova, mais independente (para ele incômoda) diante daquela circunstância, mas depois descobre que ele mesmo é quem tinha tornado aquela característica uma justificativa para não assumir o risco da paixão pela irlandesa. 

Portanto, só gradualmente (e nem por isso sem sofrimento) o narrador consegue reconhecer e assumir para ele mesmo que está apaixonado. É quando por exemplo, descreve, com certo amor, a cena da irlandesa brincando com seus filhos, ou, mais tarde, quando se incomoda com a ausência da moça, ou ainda, quando tem medo, nas conversas com o pai, que ele descubra suas reais apreensões. Essas, por sua vez, fazem com que ele fique embaraçado em emoções contraditórias: ora tratando com grosseria a moça, ora se incomodando com a sua distância. Ele acaba movendo-se numa atmosfera escura e irrespirável, como a de um túnel. A razão para isso: a obrigação de reprimir o sentimento por causa das convenções sociais. Assim, figuras como a do pai e a da mulher passam a ser a representação dessas coibições morais, nas palavras do narrador, "o vórtice de desespero onde eu e Magda nos encontrávamos, como num poço. Como num túnel."  

A aproximação e o posicionamento do túnel em relação à montanha são sugestivos. O túnel se localiza na cidade e a montanha fora dela. A cidade é o espaço das regras sociais, das coerções morais. A montanha já não traz uma atmosfera regrada, é um espaço inclusive de maior facilidade de ação. No enredo, curioso é o fato de ela se localizar acima do túnel, como a tentar vencê-lo. E mesmo só quando o narrador assume e se submete a seu sentimento é que ele é capaz de transpor o túnel.

A novela é surpreendente na forma de descrever as dissimulações da pessoa que é obrigada a inibir um sentimento por causa das regras de conduta burguesa para o relacionamento de casais. Para mim, pode ser seguramente colocada ao lado dos textos pontos-altos da carreira do escritor Fernando Sabino.

2 comentários:

Lívio disse...

Legal, Bruna. A montanha (mágica) é a Pasárgada do personagem.

Não conheço o livro. Obrigado pela indicação.

Bruna Caixeta disse...

Você muito bem sintetizou, Lívio: a montanha é mesmo a Pasárgada do personagem.

Quanto ao livro, vale muito a pena ler.

Um abraço.