segunda-feira, 11 de abril de 2011

Um pouco de Clarice Lispector

Curiosa e coincidentemente, na semana passada, ouvi falar muito de Clarice Lispector. Não só amigos (especialmente o Ismael e a Ana Amélia) tocaram no seu nome e mencionaram trechos de suas obras, como também estive às voltas com uma biografia recentemente lançada da escritora, escrita por Nádia Battella Gotlib (São Paulo: Edusp, 2009). Isso me inspirou a vontade de transcrever qualquer fragmento clariciano.

Sem querer tecer exaustivos comentários sobre os trechos a citar e sobre a obra como um todo da Clarice, gostaria apenas de ressaltar uma das características mais interessantes -na minha opinião-, possível de ser extraída da literatura dela: o sempre espanto e prazer pela descoberta, seja ela de que natureza for. Se até onde li Clarice me fosse pedida uma palavra que resumisse e definisse os seus textos, diria ser a palavra "descoberta". Acrescentaria também que a experiência de ler Clarice é a do enveredar-se por conhecidos ou recônditos universos, a desembocar no deparado mundo nunca conhecido. 

Os trechos escolhidos fazem parte da obra  Aprendendo a viver (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004) e neles, ela, sem querer, como sempre alegava não querer, fala dela mesma, ou seja, fala da suas experiências sobre a vida, sem intenção de escrever algum enredo: tenta empreender a tarefa de decifrar os incompreensíveis mistérios particulares do eu. O resultado, vindo de uma escritora, só poderia ser literatura.

Então, ficam os trechos, acompanhados de fotos (das quais desconheço a autoria, mas, enfim, belíssimas) da, também bela, Clarice Lispector:



 
 “Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.”.




 “Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
       Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. [...] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.”

 

 “Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...”

P. S.: (Já está virando hábito o "P. S"...)
Recomendo este site oficial da Clarice, onde se pode, além das informações corriqueiras, ler algumas correspondências que ela recebeu dos escritores Fernado Sabino, Manuel Bandeira e Drummond, por exemplo,  bem como escutar dois livros dela, o A via crucis do corpo, declamado pelo Antonio Fagundes e Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, declamado por Beth Goulart. Eu indico o site e os audiolivros.

14 comentários:

Christiane Rocha disse...

Oi Bruna!
Já teve acesso a tal biografia?
Lembro-me de assistir a uma entrevista dela na tv. Como era uma criança(7 anos) fiquei mesmerizada com a figura dela(ela não era bem símpática à moda da mídia, né?).Depois fiquei semanas com a figura dela (e as falas, que mal discernia) na cabeça.
Tenho a "ligeira" impressão de que ela traduziu seu momento atual, certo?Ah, posso estar enganada também.
Abração a pertado,
Chris

Lívio disse...

Bruna, valeu pela indicação do saite.

Christiane Rocha disse...

Falando em biografias, saiu uma do Fernando Pessoa, que eu adoraria ler.Já ouviu falar?E tem a do Lobão tbm,(rsrsrs).Quem tiver e puder me emprestar, vou dar "pulos de contente"(haahahaha).
Abraços a todos blogueiros e leitores
Chris

Bruna Caixeta disse...

Chris,

bem novinha você foi ver a Clarice, em?! Ela é mesmo um pouco não convencional para a mídia e para a vida mesmo.
Quanto à biografia dela, a comprei numa promoção da Edusp feita aqui na Unicamp; mas ainda não a li inteira, catei páginas aqui e ali. Esses dias estou um pouco atarefada. Mas, quero lê-la tão logo me restar um tempinho. Talvez até chegue a falar dela aqui.
Com relação às outras biografias, a do Lobão e a do Pessoa, não li nenhuma, aliás vi só a do Lobão. Legal saber que saiu uma do Pessoa. Valeu pela informação.
Sobre as citações da Clarice, não acho que elas tenham uma relação direta com o meu "momento atual". A escolha delas obedeceu o critério do que achei interessante. Mas...o gosto acaba por ser determinado por certa fase do ser. Se assim considerarmos, pode até ser que os trechos venham a traduzir um tal "momento atual da Bruna", que não entendi bem ao certo o que vem a ser.
Mas, o que mais vale, dessa história toda, é ler as citações; é ler Clarice.

Grande abraço.
_______________

Ei, Lívio, disponha.

Grande abraço.

Márcia disse...

Oi filha,
Eu conheço pouco da Clarice, mas este primeiro trecho que vc citou é uma das coisas mais lindas que já li....com que clareza (tomando emprestado o próprio termo que ela usa)ela consegue nos transmitir seu estado de alma!
Um abraço cheio de saudade
Mamãe

Bruna Caixeta disse...

Oi, mãe!

Pois é, a Clarice é bem clara para definir seu estado de alma. Tarefa muito difícil, por sinal.
E de pensar que mesmo sabendo claramente muitas coisas de nosso estado - ou, ilusoriamente, a pensar que sabemos - ainda não eliminamos o problema de lidar com muito estorvo existencial...

Um abraço apertadíssimo.
Obrigada pela sua presença!

Ana Amélia disse...

Oii Bruninha!

Nossa, estou com vergonha de ainda não ter comentado seu belíssimo texto e homenagem a Clarice. Vc me cita como uma das "inspiradoras" para seu post, hehe.. o que na verdade é uma honra, pois eu gosto muito de você, e compartilhar coisas tão belas contigo (como Clarice) é um prazer enorme. E é mai prazeroso ainda saber que não "te encho" com minhas futilidades e/ou comentários amadores.. quer dizer.. eu acho né! hehe.
O trecho que mais gostei foi o do meio.. sobre ser adulta. "Devo lutar e tornar-me uma pessoa adulta?" Tenho vontade de dizer para Clarice que chega um momento da vida que isso não está mais nas nossas mãos.. eu tenho medo (e muito!) de tornar-me adulta demais... não quero perder de vista a criança que há em mim... mas.. muitas vezes sinto-me incapaz de tomar essa decisão.. porque parece que já tomaram a decisão por mim.
Bruninha, obrigada pela dica do site. Adorei! ;)

Beijos e abraços de sua amiga,

Anita.

fono08 disse...

Olá Bruna!!
vim apreciar o seu blog e me deparei com ninguem mais e ninguem menos que Clarisse!!!
Amei sua publicação e a dica do site!!
um beijo,
Raquel =)

Bruna Caixeta disse...

Anita,

nada de se envergonhar por não ter vindo comentar o "post". Não se cobre uma presença aqui, mesmo que tenha contribuído para a construção da postagem, como foi o caso desta. Existem momentos atribulados que nos fazem colocar o urgente à frente do importante, do legal, do lazer, o qual este blogue, certamente, representa em algumas horas para você - pessoa tão frequente por aqui.
Só de tê-la comentando - seja quando for -, é um presente, uma felicidade. E saiba que amadores seus comentários estão longe de ser. Você, todas as vezes, levanta questões interessantes. Veja, pelo mais atual comentário seu, este assunto do transformar-se em adulto. Que bela reflexão sua pensar que a vida se encarrega, sem nos "pedir permissão", de nos fazer adultos. Tenho esta mesma sensação. Eu, com minha ainda romanceada concepção da infância, exalto esta fase da vida, por nos deixar peçinhas de bons sentimentos e valores. Peçinhas que a vida adulta, em certas circunstâncias, acaba por nos induzir a esconder ou abafar. Acho que aquelas pessoas que de fato amam a infância, nunca a perdem inteiramente. Você, Anita, com sua maturidade toda, se amante da infância, nunca ficará sem ela.

Um abraço forte,
da amiga.

Bruna Caixeta disse...

Oi, Raq! Seja bem-vinda!

Que felicidade tê-la por aqui. Mais uma boneca apreciando o "Brumas".
Então quer dizer que você gosta da Clarice? Que bom. Agora é aproveitar o site.

Um abraço grande.

Nélio Lobo disse...

Clarice é uma daquelas criaturas extraordinárias, Bruna, de uma beleza literária quase sobrenatural. Já estou baixando os audiobooks. Conheço outros trabalhos dos narradores. A voz, a dicção e a interpretação de ambos são de primeiríssima. Obrigado pela dica e forte abraço.

PS. Hoje vou aproveitar o feriado para assistir ao “Cisne Negro” com a família. É grande a expectativa. Depois comento com você.

Bruna Caixeta disse...

De fato, Manoel, Clarice é extraordinária duplamente, como pessoa e escritora.

E que bom saber que você gostou dos audiobooks. Também gostei bastante das interpretações dos narradores. Vou procurar conhecer outros trabalos deles.

Então quer dizer que vai assitir ao "Cisne Negro"?! Aguardo ansiosamente pelo seu comentário.

Um enorme abraço.

Produção textual disse...

Oi Bruna!
Tb gosto mto da clarisse! Parabéns pelo blog!:)
Liv

Bruna Caixeta disse...

Ei, Liv! What a nice surprise you here!

Legal saber que gosta da Clarice.

Valeu pela 'passada' aqui no "Brumas".

Abraços.