sábado, 19 de março de 2011

Cisne Negro



Parece-me que uma das discussões essenciais do filme Cisne Negro (EUA, 2010), de Darren Aronofsky, parte da observação do excesso de zelo técnico que Nina (Natalie Portman) deposita na prática do balé. A partir do tenso ambiente dos bastidores de uma academia de dança, espaço ao mesmo tempo de descontração e preocupação com a disciplina, o enredo acaba tematizando um dilema humano, mas, agora, de forma que a espontaneidade e a pressão representem estados de ser distintos da personagem, dividida ora pelas imposições severas de uma mãe supostamente amiga, ora pela busca total de liberdade. Dessa forma, o palco da bailarina Nina será também o palco da Nina ela mesma, onde representar o papel principal da versão moderna do clássico Lago dos Cisnes será viver um intenso desafio de conhecimento e construção da sua verdadeira identidade, simbolizada pelo branco e o negro.
Sem tomar, por uma leitura maniqueísta, essas duas partes como o lado bom e mau do ser humano, equivalentes respectivamente às cores branca e preta, entendo que a divisão das cores, e, consequentemente, dos diferentes estados de espírito da personagem, estejam associados àqueles sentimentos e situações que estão, ou não, já imanentes à pessoa de Nina. Explico-me: Nina consegue executar, sem qualquer erro, o cisne branco, porque para ela representar o momento da fragilidade e da submissão ao forte é algo que já a constitui como ser humano, fora das cenas. Logo, uma cuidadosa prática basta para aperfeiçoar seus gestos. Já o cisne negro, vem-lhe como um desafio, imposto pelo seu coreógrafo (vivido por Vincent Cassel) e pela sua mais nova colega de academia (vivida por Mila Kunis), pois lhe é exigida uma performance que ainda não está em conformidade com o seu ser, a performance do ímpeto, da independência, da força, obtida mais facilmente por intermédio da espontaneidade, sem as cominações da mãe.
Não contando uma novidade, poderia afirmar que para obter essas características: a força, a independência e a não submissão, será necessário a ela levar uma vida menos ditada pelos hábitos cotidianos assegurados por uma mãe disfarçadamente doce e ideal. O espaço de Nina, quando ainda está reduzida ao sucesso como cisne branco, é o espaço do quarto com tudo em ordem e do metodismo da mãe (hora imposta para dormir, chegar a casa, comida escolhida/imposta – como a forte cena da recusa de Nina em comer o bolo de aniversário dado pela mãe); sem contar a polêmica atitude da mãe de querer impor uma falsa inocência infantil a Nina, como vemos além de nos seus obsessivos comportamentos com ela, através da decoração do quarto, com seus incontáveis bichinhos de pelúcia e objetos de um universo infantil. Logo, logo, percebemos que todos esses detalhes concorrem para a definição do que é Nina como pessoa: alguém altamente submissa às vontades da mãe, mas também prestes a romper com todas estas imposições.
Esta relação mãe e filha, que é até motivo de discussões no âmbito da psicanálise, por causa das fortes pulsões recalcadas, ganha seu limite com a questão da sexualidade. Numa cena, que parece apenas ser a representação do inconsciente reprimido da personagem, portanto, não algo que de fato se concretiza, Nina passa a noite com sua companheira de academia, deixando sua mãe desvairada, embora com o inquebrantável olhar inquisidor. A cena acaba por ser apenas uma das portas para a bailarina controlada e forçosamente ingênua ir tomando coragem para enfrentar as imposições da mãe e, finalmente, sair de um mundo em que não é de fato o real. Tal atitude só vem a contribuir para a sua aptidão em não só encenar o cisne negro, mas vivê-lo fora de cena.
Depois de muitos conflitos, como as perturbações psicológicas e a asquerosa ferida das suas costas impossível de ser contida, que pode ser a representação da consciência permanente perturbada e prestes a se modificar (como dizia Herman Melville “a ferida é a consciência e nada pode estancá-la”), só no momento final da apresentação que Nina de fato realiza (???) sua meta: ser o cisne negro e branco. A realização se dá pelos esforços de dois vivos exemplos do ímpeto e do agir espontâneo, Thomas Leroy, o coreógrafo e Lilly, a companheira de academia.
Sem tomar o sentido da espontaneidade como o da irresponsabilidade, a dosagem dos dois lados (da fragilidade e do ímpeto), se é que é possível num só tempo e espaço, parece-me ser a melhor saída. Como me lembra o oriental símbolo do taoísmo, o conhecidíssimo Yin-Yang (aquele em que num círculo há a divisão do preto e do branco, e que no lado preto há a bolinha branca e, no outro lado, o inverso dessas cores), parece-me que o estado ideal do ser está nesta capacidade de reunir, em justo equilíbrio, o branco e o preto, de forma que o branco se imiscui no preto, sem que por isso a cor preta deixe de ser preta e a branca, branca. Vale a pena conferir, assistindo ao filme, se também é esta a crença do cineasta, sobretudo no final das cenas.
Filme de grande apelo visual e apuro na representação do conflito psicológico, o Cisne Negro é também abertura para discussões em várias áreas do conhecimento.
Para quem ainda não o assistiu,
Bom filme!

12 comentários:

Lívio disse...

Bela leitura de "Cisne negro", Bruna.

Que venham outras...

Bruna disse...

Oi, Lívio,
Obrigada mesmo pelas palavras.
E um agradecimento especial a você pela sugestão dada para o texto. Certamente foi muito, muito válida.
Quanto às outras leituras, espero agora fazê-las com mais frequência.
Um grande abraço,
B.

Anônimo disse...

Bruna,
li vários comentários e resennhas sobre o filme. Contudo a sua escrita é de uma riqueza que faz com que o filme seja mais que recomendado!
Beijos aos montes e vou espalhar pro resto da moçada a boa nova,pode?Digo, o Rafa, Manolo, Luís André, Carlos e pros meus "trocentos" amigos blogueiros

Ismael disse...

Bruninha, reforço aqui também os meus parabéns pelo "Brumas". Será um prazer acompanhá-la.
Vi o filme, que é de fato grandioso em todos os segmentos: atuações, fotografia, música, roteiro, direção...Tudo muito intenso. Outra questão interessante é que mesmo o roteiro sendo muito bem amarrado, ele ainda permite diferentes interpretações, como o olhar espiritual, que você bem fez, ou o lado físico, patológico da trama.
É isso.
Abraços,
I.

Nélio Lobo disse...

Bruna, excelente tema de abertura. O blogue começa seus primeiros passos com o pé direito. Não conferi o filme, mas seu texto tem vida, luz e beleza próprias. Grande abraço.

Bruna Caixeta disse...

Oi, "Anônimo", tudo bem?

Queria ter certeza de quem é você, depois.

De qualquer forma, muito obrigada pelo seu generoso comentário.

E fique à vontade para divulgar este blogue para os seus ilustres amigos.

Abraços.
__________

I., meu grande amigo, obrigada por vir me acompanhar aqui. Para mim que será um prazer tê-lo presente.

Que bom que você viu o filme e gostou! Ele de fato tem excelência em todos os aspectos.
Sem estar exagerando, considero-o uma obra artística mesmo, pois além dessas excelências, o acompanha as muitas possibilidades de leitura, algo que, com seriedade, é bem aceito pelos grandes artistas e críticos.

Abração.
__________

Manoel, que bom você aqui!

Seria legal depois você tirar um tempinho para conferir o filme; julgo mesmo válido.

E obrigada pela sua opinião sobre meu texto. Sempre gentil.

Volte sempre!

Grande abraço,

B.

Ana Amélia disse...

Oii Bruninha!

Como vc escreve bem! =) Estou muito feliz por tê-la conhecido e por vc agora ser boneca junto com a gente! Eu já vi o filme e acredito que faz juz aos prêmios que ganhou da academia (agora não me lembro se foi apenas um ou mais, anyway..) A metáfora do branco e do negro para mim é muito interessante principalmente porque sempre fui fascinada pelas antíteses do Barroco (acredita que eu gosto do Barroco?? o.O ahsuahs pois é.. estranho mas é verdade). E quando vejo esse conflito psicológico da Nina e a construção de sentidos possível a partir da doçura e da delicadeza do Cisne Branco e da "violência" do Cisne Negro meu "Eu" de estudiosa das ciências humanas viaja procurando entender um pouco mais sobre a natureza do homem.

Parabéns pelo blogue! =)

Bruna Caixeta disse...

Anita!

Uma boneca "pousou" por aqui!Que boa sua presença! Obrigada pelo comentário.

Oh, não acho tão estranho o fato de você gostar do Barroco, - por que seria? É mesmo uma época interessante.

Concordo demais com você que no "Cisne Negro" exista essa atmosfera do claro e do escuro, justamente para completar este sentido contrastante (branco x preto) do enredo.

Um detalhe: a própria imagem, que propositalmente escolhi para acompanhar o "post", revela essas características barrocas, tanto no âmbito estético quanto no psicológico.

Adorei a sua observação e também o fato de saber que o seu "eu" das humanas busca entender a natureza do ser humano.

Adorei conhecê-la e também tê-la por aqui.

Desde já, volte sempre!
Grande abraço,
B.

Christiane Rocha disse...

Bruna! a tal anônima sou eu, Chris!Mas pode deixar que vou assinar meus "coments" como Christiane Rocha.E qdo vem a "padiminas", esta terra tão..."cosmopolita"?(kkkk)
beijocas
Chris

Bruna Caixeta disse...

Chris,

eu disconfiava que era você, pelo seu jeito de escrever e conversar comigo. Mas, não quis afirmar nada, porque fiquei com medo da possibilidade de não ser você.

Espero ir a Patos no feriado da Páscoa. Já estou com saudade da minha cidade e dos meus amigos.

Abração.

Vini disse...

Brunex, adorei! Tá ótimo!! =) =) =)

Bruna Caixeta disse...

Ei, Vini, maravilha você aqui!

Obrigada pelo comentário.

Abraços.