quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Falência da Literatura


Um descontentamento recente, senão sentimento de não mais pertencimento de algum modo à minha própria área de estudo, tem há algum tempo, me feito pensar e refletir sobre o que define a Literatura hoje e qual a situação atual da Literatura enquanto área de estudo nas escolas e universidades.
Para quem estuda ou ensina Letras e, mais especialmente, para quem estuda ou ensina Literatura, creio cada vez ir ficando mais claro que a sua área de ensino está bastante mudada. Sem precisar de profundas análises, é evidente que a Literatura, hoje, está de cara diversa daquela a que fomos apresentados há não muito tempo na graduação, mesmo nas escolas. Hoje, dito de modo sumular, a Literatura está se representando e representada através dos autores e obras produzidos pelos negros, pelas mulheres, pelos grupos étnicos marginalizados, e mais recentemente, pelos gays - com toda a ideologia que todos carregam enquanto grupo social.
O cânone universal conhecido, composto por nomes constelares como, por exemplo e para ficar com alguns poucos, os de Shakespeare, Dostoievski, Melville, e, no Brasil, Machado, Alencar, Rosa, no qual a literatura sempre se apoiou e pelos quais se apresentou, seja como disciplina ou área, perdeu força para representá-la e perpetuá-la; e hoje, salvo raros casos, ainda orientam as atividades dos cursos de Letras e das disciplinas de Literatura nas escolas.
Professores e críticos tentaram (e alguns ainda tentam) se lançar à tentativa de adequar suas leituras e estudos sobre os autores canônicos aos temas, ideologias e causas desses grupos de minoria, de modo, inconsciente ou consciente, a lançar um bote salva vidas à área, mas não precisou muito tempo e muitas produções para se perceber, salvo algumas exceções – entre as quais, não deixo de lembrar um caso de excelência: os trabalhos e disciplinas do professor Alfredo César Melo na Unicamp sobre os autores ícones nacionais da literatura -, que esse procedimento não serviria de modelo resistente, aplicável para boa parte das obras, e garantia de sua continuação.
O ótimo momento de edição de livros no Brasil e no mundo lança alguma contribuição no que diz respeito ao resgate de muitas obras e textos ditos consagrados, da tradução e edição de peças inclusive raras do campo literário, mas o fenômeno por si só não dá conta de uma durável valorização desses autores nem promove ou ajuda a promover o tipo de ressuscitação necessária à área de Literatura, uma vez que os lugares em que essa produção mais escoaria, lhe fornecendo contribuição maior para uma duração decisiva, isto é, o curso de Letras com o campo da Literatura e uma ou outra revista literária, não mais tem-lhe como prioridade. 
O fenômeno editorial se apoia em projetos editoriais de interesse e encomendas privadas e ligada a setores outros que não primeiramente o de Letras, e somente promove um tempo de vida estendido àquelas obras associadas a eventos temáticos, produções cinematográficas, homenagens diversas, coisas do tipo.

Os profissionais da área e as instituições onde a disciplina existe, se escolas ou universidades, ainda é aos poucos que tomam consciência dessa nova configuração e situação da Literatura. E foi/tem sido paulatina a entrada e recepção maior da Literatura de identidade dos grupos sociais por ambos. Primeiro, o que antes era um trabalho sobre alguma das produções desses grupos em alguma disciplina, passou para uma disciplina especial em algum semestre, em seguida, uma disciplina letiva do semestre, até, por fim, chegar à condição de hoje: a maior parte da ementa do curso, o tema por excelência das seleções e concursos da área, dos seminários e das reuniões literárias mais celebradas no país e fora dele; conjunto que então perpetua a identidade da Literatura enquanto disciplina, como a dos grupos sociais, e também instaura o referencial identitário das produções ficcionais que ficam em voga.
Dada a direção que as coisas tomaram e a condição atual da área, tanto admitir como submeter-se à literatura de nova forma, i.e. colocar-se passo a passo com a identidade diversa da área, atualizando os cursos de Letras com disciplinas ligadas às obras e aos autores de minoria, vem antes de qualquer escolha ou manifestação de gosto e/ou concordância, passou a ser a condição imprescindível para a sobrevivência da Literatura enquanto área de estudo. De modo tal que as instituições, os cursos, os professores e a crítica que não se conscientizar da mudança do campo, ou insistir em ignorar os fatos e tentar continuar ferrenhamente apegados aos modelos de estudo e critica vencidos da literatura canônica universal e nacional, se tornam os maiores agentes dos mais fatais golpes à própria área, prejudicando a sua retomada e também provocando a rarefação ainda maior da área de estudo.
Quando essa mudança de configuração da Literatura começa no país, e o que a causa e vem lhe definir, são investigados, no Brasil, e talvez pela primeira vez, pelo professor da Unicamp, Alcir Pécora, após ele mesmo ter sentido (o próprio Alcir confessa), em dado momento da sua longa atuação docente e sob as mudanças referidas, ter ficado decisivo tanto para ele enquanto professor de Literatura, quanto para a Literatura enquanto disciplina acadêmica, como para a literatura no geral, repensar a situação atual da literatura e as relações da literatura com as Humanidades e com o campo inteiro da cultura.
Em comunicação de invariável primor intelectual e de reflexão indispensável, proferida em Coimbra em 2015, divulgada pela Revista Sibila (online) em 2016, nomeada “A musa falida”, Alcir pontua cinco pontos (ou causas) que julgou determinantes para a mudança do campo, intitulando cada um deles; e com essa comunicação declarativa, deixa como uma espécie de carta aos estudantes de Letras, aos professores da área e às instituições em que ainda o ensino de Literatura é feito.
Apresento três dos cinco pontos que Alcir Pécora julgou decisivos para a Literatura ter se tornado hoje eminentemente de grupos sociais marginalizados, bem como estar vivendo o tipo de situação de rarefação que está. São eles: 1º) a crise da ideia nacional, ou do Estado-nação – causada pela globalização; 2º) o questionamento da ideia de Literatura como representação – provocado pelo nascimento da Epistemologia; 3º) a cooptação da Literatura com as ideologias das minorias – iniciada com o advento da luta dos negros pelos direitos civis nos anos 60, nos EUA, e os demais movimentos que posteriormente surgiriam indiretamente motivados pelas conquistas desse: o feminismo, o movimento gay, o latino-americano, entre outros. E em seguida, e finalmente, deixo aqui o texto na íntegra, tanto para conhecimento melhor dos demais, quanto para uma reflexão individual e mais profunda do assunto em si.
No primeiro dos pontos, que Alcir nomeia “teleologia nacionalista em xeque”, ele faz a articulação entre os termos da formação do moderno Estado-nação e os papeis atribuídos à Literatura no âmbito das universidades – como informa, tomando por base e seguindo procedimento equivalente ao de Bill Readings, no livro “University in Ruins”, no qual este autor avalia as Humanidades no âmbito das universidades americanas e britânicas.
Explica que exatamente neste momento preciso de constituir fisicamente a comunidade associada à região de origem, acompanhou-lhe a necessidade de constituir também a ideia de comunidade, momento em que se descobriu que “a literatura mais que qualquer outro campo do conhecimento pode produzir o sentimento de pertença entre as pessoas que constituem uma nação” e se apostou nela como “a grande hipótese de reforço do sentimento de ligação entre as pessoas que participavam desse Estado-nação”, e ela passou a “cúmplice decisiva na invenção do sentimento nacional”.
Alcir explica como, neste ponto, simultaneamente, a literatura tanto recebeu a sua projeção particular sobre as demais áreas, quanto surgiu a noção de que grandes historiadores literários passam a ser aqueles que submetem a literatura à constituição de um campo nacional orgânico – ou, em outras palavras, “o autor é grande quando se põe a serviço da constituição de uma nacionalidade autônoma e independente”. Deste ponto, a Literatura tanto fica definida por ser um texto de representação do real, quanto os textos mais aclamados são aqueles com representação do nacional – ordem que passa a ser fundante da orientação para a produção de textos literários, quanto para a crítica dos mesmos.
E assim funciona até por volta de meados do século XX, quando então ocorre a crise da questão nacional, primeiro provocada pela falência (e o ideal) dos estados nacionais após as grandes guerras, e, em seguida, e de modo mais determinante e hoje cada vez mais forte, pelo fenômeno da globalização. A globalização instaurou a perda do sentimento de soberania nacional. A partir de então, Alcir comenta, “de um modo ou de outro, [fomos obrigados] a desnaturalizar o Estado-nação como fulcro da história dos povos, e, por conseguinte, como orientação da história literária.” O resultado disso foi a Literatura e o cânone como representação do nacional serem postos em xeque.
O segundo dos cinco pontos referido por Alcir é nomeado “crise dos modelos de representação”. Nele trata da grande mudança instaurada pelas questões sobre a linguagem, a partir, sobretudo, da “peripécia epistemológica gerada” (rs) (ou, surgimento da Epistemologia), com a publicação póstuma em 1953 de “Philosophical Investigations” de Wittgenstein.
Essa critica basicamente postula que o funcionamento da linguagem não pode ser entendido na esfera da representação, “que se traduziria melhor como uma hipostasia da representação, pois ela funciona em seus próprios termos mesmo que represente aquilo que se supõe representado nela”. Um exemplo fácil para compreender esse conceito, é o dizer dos historiadores “narrativas e discursos da história”, que é: algo bem diverso de sustentar o fato como matéria prima da documentação.
Alcir argumenta: “a crítica da representação evidencia a opacidade da linguagem que nada reflete sem a contaminação da coisa pelos seus próprios mecanismos, sem atraí-la para as suas próprias disposições, sem filtrá-la por suas convenções, sem inventá-la como existência das armadilhas que ela mesma prepara. Esse tipo de crítica complica admiravelmente as hipóteses tradicionais sobre a intuição psicológica da literatura, pois que penetração subjetiva, que intimidade do sujeito ou rasgo do inconsciente podem aparecer no texto, quando boa parte que descrevemos como sendo do sujeito, não passa de convenção da linguagem?”.
O resultado final desse tipo de crítica da representação será a “critica de paradigmas”, quando os grandes modelos de observação e interpretação do real entram em crise. “Já não há mais um discurso assentado sobre as coisas que garantisse a objetividade das observações críticas.” Deste modo, “ a critica passou a operar como opinião, arrazoado, argumento”. E, assim, fica óbvio, o que então sempre havia persistido para a Literatura, a ideia da literatura como representação, passa a ser desvalorizado, e os modelos tradicionais de narrativa e o próprio texto literário, senão invalidado, no mínimo desmotivado.
Essa crise abalou também a confiança para exercer juízos seguros sobre as obras e a própria critica – antes seguras no modelo marxista, e abriu espaço para a valorização de comentários e juízos pessoais puramente. No último dos pontos elencados por Alcir, em que trata da literatura das mídias sociais, ele ilustra ainda melhor como tem sido o papel da literatura e da crítica hoje. Observa: “o que aparece ali como literatura, em geral, está associado à criação de uma comunidade, mesmo que não haja liga real, experiência comum real, no âmbito dessa comunidade. Ao fazer circular um texto na rede, não importa muito se esse texto é literariamente relevante, mas importa muito que a sua circulação seja. Daí que, muitas vezes, nem é um “texto” o que se publica e sim uma recolha de frases [...] E nem textos extraordinários são o que se busca na rede. O que mais conta é que as tais frases sejam capazes de relacionar pessoas num gosto, nem gesto. [...] A literatura subsidiária desse tipo de escrito e publicação vale como pedra de fundação ou ampliação de uma comunidade, e a comunidade, por sua vez, tem a mesma medida de uma “subjetividade expandida”, homóloga daquele que participa dela.”
E finalmente conclui: “diante desse objetivo de expansão subjetiva, que sentido tem um crítico se apresentar diante dos amigos e dizer que aquele texto não vale na literariamente? Pior: que importância tem? O seu papel é apenas o de um censor, de um intruso, uma vez que a literatura opera aí apenas como pretexto de um suporte constituinte da amizade. Insistir em proferir juízos estéticos nessa situação é agir como parvo.” A universalidade e a autoridade ficaram abaladas no juízo critico. E a literatura, novamente, tem outras formas de recepção e configuração.
Deixando esse salto à literatura que as mídias sociais configuram e voltando à literatura cooptadas às ideologias dos movimentos sociais, se chega ao terceiro ponto mencionado por Alcir Pécora, que talvez seja o que melhor lança luz a essa aparência social e ao cunho eminentemente sociológico que tanto as obras literárias que hoje dominam o espaço literário, quanto a área de estudo Literatura na universidade, tem tido. Justamente nomeado “literatura cooptada”, Alcir comenta sobre o advento dos chamados estudos culturais, ocorrido nos Estados Unidos, com espetacular desenvolvimento nos anos 1960 aos nossos dias.
Explica: “os estudos culturais, como é sabido, nascem dos movimentos dos direitos cívicos, associados, num primeiro momento, às lutas dos negros. Esses movimentos tiveram um rebatimento decisivo dentro da discussão universitária, e particularmente da discussão literária, nos termos daquilo que ficou conhecido como o debate do cânone. [...] O que aconteceu a partir da discussão do cânone é que, de repente, revelava-se haver uma política das hierarquias culturais e não uma lei inscrita no campo da literatura. Aquilo que parecia inscrito na própria ordem das coisas e da história, a ideia de literatura, como disse antes, naturalmente implicada nos processos históricos do Estado-nação, de repente apresentou-se como coação deliberada de uma elite que controlava o conjunto dos textos que valia a pena estudar. As questões se sucediam com contundência dramática e irrespondível: por que não existem negros no cânone? Não há autores negros que valha a pena ler? [...] O que começou com os negros passou para a questão das mulheres: porque não há nenhuma mulher no cânone literário nacional?. [...] Depois de negros, mulheres, latinos, o domínio seguinte atingido pela expansão da desconfiança em relação à literatura é o da orientação sexual, talvez hoje a que está mais no foco das discussões internacionais, tendo até a sua própria rubrica acadêmica nos termos da chamada “queer literature” ou literatura gay: se o cânone excluía raça e gênero, é certo que excluía também práticas sexuais diversas da considerada padrão.
As ideias que, como vimos, estavam na base da ideia de universidade – a saber, que a literatura constitui o corpo central de um edifício racional, democrático, e a que todos devem ter acesso para compreender aquilo que é mais verdadeiro e forte no interior dos valores nacionais -, revelam-se agora a máscara ideológica perversa de um enorme processo de exclusão social. [...] Nomes de escritores gays, negros, latinos, de mulheres, são sugeridos a ocupar o cânone, que passa por uma expansão, com base no argumento da diversidade de perspectivas, considerada mais representativa e democrática. [...] Desse ponto de vista, a rigor, a literatura inteira foi repensada como ‘testemunho’, quer dizer, como depoimento pessoal, mas também social, que contribui para a expressão de um sofrimento, de uma experiência traumática, e para a sua assimilação adequada de modo a reequilibrar de maneira mais justa a sociedade a que diz respeito. [...] O importante passa a ser justamente levantar, incentivar, e promover os testemunhos dos grupos mais atingidos pelas exclusões antidemocráticas. [...] São esses os relatos que passam a ocupar o novo núcleo do valor narrativo e literário.”
A discussão política do cânone levou a um questionamento dos tidos grandes autores, os currículos tradicionais de Letras foram duramente criticados "e a literatura, por sua vez, foi repensada nesse conjunto de discussões menos como prática artística ou função estética, do que como “direito” dos grupos sociais – o que é muito diferente de como eram pensados nos termos do Estado-nação, enquanto partes de um corpo nacional, racional e universal, cuja autonomia devia ser procurada na soberania do conjunto e não nas exigências das partes."
Alcir encerra essa discussão chamando a atenção para o fato de que "não é o desejo de democracia, mas o empoderamento econômico e social que passa a buscar um lugar prestigioso de representação cultural, como lhe é lembrado pelo livro “Cultural Capital” de John Guillory. E clama para a reflexão de que até que ponto a arte reduziu o espectro de sua apreciação ao gesto de denúncia sociológica.
Está óbvio que a Literatura deve também acompanhar e ser o meio de expressão e voz, para tanto os grupos marginalizados reclamar, quanto expor os seus direitos; que os currículos escolares e dos cursos de Letras devam ceder ao processo já estabelecido e em curso - e aqui, como também no texto de Alcir, não há nenhuma aversão a isso. Alcir - como aqui também espero eu ter feito - somente traz à tona a discussão e o apelo à reflexão de até onde todas essas transformações têm chegado e no que têm se transformado; que identidade a Literatura passa a assumir, que espaço a Literatura passa a ocupar nas universidades, nas mídias e noutros meios de produção; o que ou quem passam a constituir a crítica artística, e, finalmente, que textos passam a ser considerados literatura.
Já ao final de sua comunicação, Alcir encerra insistindo que se recorde e se lembre do aspecto genuíno literário: "é claro que eu não vislumbro tampouco saída para esse quadro de crise. Mas eu gostaria de insistir em algumas alternativas de reflexão que tivessem da arte e da literatura sentido menos instrumental de desvendamento de processos sociais, intelectuais, ou sejam quais forem, para enfim reafirmar a ideia de que o interesse da obra de arte reside irresistivelmente na forma que adquire o seu fazer, e, portanto, na sua constituição como obra."
Aqui fica um ponto a partir do qual será possível partir em retomada às discussões sobre Literatura.

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