sábado, 7 de julho de 2018

O percurso de uma visão de mundo, por Tolstói

A certa passagem de Ressurreição, romance de Tolstói, há um interessante e minudenciado percurso por uma visão de vida. É exposto como a maneira como entendemos o mundo é seletiva, e, em grande medida, também limitadora. Através da forma como enxergamos o mundo, a exposição do narrador deixa expressa: fechamos círculos sociais, adotamos uma noção de bem e mal característica, tratamos e destratamos de modos específicos cada pessoa, nos damos nosso preço e o preço de nossa profissão, e, até, selecionamos as nossas memórias! - e tudo isso, na maioria das vezes, sem muita ou exata consciência individual da atitude.

"Todas as pessoas, a fim de exercerem sua atividade, precisam considerá-la importante e boa. Por isso, qualquer que seja a sua situação, a pessoa criará necessariamente uma visão geral da vida em que a sua atividade lhe pareça importante e boa.
Pensa-se, habitualmente, que o ladrão, o assassino, o espião, a prostituta, uma vez que admitam ser a sua profissão um mal, devem envergonhar-se dela. Mas acontece exatamente o contrário. As pessoas a quem o destino ou os próprios pecados e erros colocaram numa determinada situação, por mais irregular que ela seja, criam uma visão geral da vida em que a sua situação lhes parece boa e respeitável. Para a manutenção de tal visão, conservam-se instintivamente num círculo de pessoas onde se adota a mesma noção que elas criaram a respeito da vida e do seu lugar nela. Isso nos espanta quando se trata de ladrões, que se gabam de sua habilidade, de prostitutas, que se gabam de sua devassidão, de assassinos, que se gabam de sua crueldade. Mas isso nos espanta apenas porque o círculo-ambiente dessas pessoas é restrito e, sobretudo, porque nos achamos fora dele. Porém não ocorre o mesmo fenômeno com os ricos, que se orgulham da sua riqueza, ou seja, da espoliação, ou com os chefes militares, que se orgulham do seu poderio, ou seja, da violência? Não enxergamos em tais pessoas uma noção da vida, do bem e do mal deturpada, com o propósito de justificar a sua condição, apenas porque o círculo de pessoas que adotam essas noções deturpadas é maior e nós mesmos pertencemos a ele.
Máslova também criou uma visão assim da sua vida e do seu lugar no mundo. Era prostituta, condenada aos trabalhos forçados e, apesar disso, formulou para si uma visão de mundo em que podia aprovar-se, e até orgulhar-se de sua condição, diante das pessoas. 
Tal visão de mundo consistia em que o bem mais importante para todos os homens, todos, sem exceção - velhos, jovens, estudantes, generais, instruídos, ignorantes -, era a relação sexual com mulheres atraentes e por isso todos os homens, embora fingissem estar ocupados com outros assuntos, no fundo só desejavam isso. Ela mesma - uma mulher atraente - podia satisfazer ou não satisfazer o desejo deles, por isso era uma pessoa importante e necessária. Toda a sua vida, anterior e atual, era uma confirmação do acerto daquele ponto de vista.
Ao longo de dez anos, onde quer que estivesse, começando por Nekhliúdov e pelo velho comissário de polícia rural e terminando pelos carcereiros na prisão, Máslova viu como todos os homens precisavam dela; não via e não notava os homens que dela não precisavam. E por isso o mundo inteiro lhe parecia uma congregação de pessoas possuídas pela luxúria, que a vigiavam de todos os lados e, por todos os meios possíveis - engodos, força bruta, compra, astúcia -, esforçavam-se para dominá-la.
Assim Máslova entendia a vida e, à luz dessa visão da vida, ela não só não era a última pessoa das pessoas, como era alguém muito importante. E, mais que tudo no mundo, ela prezava essa visão da vida, não podia deixar de prezá-la porque, se alterasse essa visão da vida, perderia a importância que essa visão da vida lhe atribuía entre as pessoas. E a fim de não perder sua importância na vida, Máslova mantinha-se instintivamente no círculo de pessoas que encaravam a vida exatamente como ela. Advinhando que Nekhliúdov queria levá-la para um outro mundo, opunha-se a ele, prevendo que no mundo para onde a atraía, teria de perder aquele seu lugar na vida, que lhe dava confiança e respeito próprio. Pela mesma razão, rechaçava as lembranças da mocidade e as primeiras relações com Nekhliúdov. Tais lembranças não combinavam com a sua atual visão de mundo e por isso foram completamente apagadas da sua memória, ou melhor, foram guardadas intactas em algum ponto de sua memória, tão bem trancadas, tão bem escamoteadas como as abelhas escamoteiam o seu ninho para que as larvas, que podem destruir todo o trabalho das abelhas, não tenham nenhum meio de acesso a ele. E por isso o Nekhliúdov atual era para ela não aquele homem a quem amou no passado, com um amor puro, mas apenas um cavalheiro rico, de quem podia e devia tirar proveito e com quem só podia ter as mesmas relações que tinha com todos os homens."

Liev Tolstói. Ressurreição. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 152-154. 

Sobre "Ressurreição", romance pouco lembrado do autor, foi publicado em 1899. Um ano após sua publicação, Tolstói foi excomungado da Igreja Ortodoxa russa. O motivo, é ser possível destacar no enredo do livro, a exposição sem mesura de um conjunto de ideais da seita de cristãos dukhobors (em russo, "lutadores do espírito"), com os quais Tolstói simpatizava. Esses cristãos, simpáticos a diferentes ideais, propagavam a negação da Igreja, da Bíblia, da propriedade, do Estado, do dinheiro, e, em contrapartida, defendiam um estilo de vida radicalmente democrático, comunitário e pacificista.
Durante a vida de Tolstói, Ressurreição foi seu livro de maior repercussão,chegou a ser mais vendido do que os grandes sucessos Guerra e Paz e Ana Karênina. Contudo, por ter uma recepção pouco acolhedora no século XX, esses romances precedentes ficariam mais famosos. 
Como conta o tradutor e apresentador da edição brasileira da Cosac, Rubens Figueiredo, no tumultuado início do século XX, "Ressurreição seria taxado como romance de tese, contaminado pelo pathos moral e religioso presente nas campanhas humanitárias de Tolstói". Tal leitura do século XX eximiu muitos de lerem a obra, e ela, desde então, ficou pouco lembrada. Em já outro momento histórico, sem dívidas imediatas com eventos revolucionários de seu tempo histórico, a obra ganha outra vez espaço na literatura mundial. 

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