domingo, 25 de outubro de 2015

Da dissimulação honesta


Do autor a quem lê

[...] Meu fim foi tratar de que o viver prudente tem por boa companhia a pureza de ânimo, e é mais que cego quem pensa que para ter prazer na Terra deveria abandonar o Céu. Não é verdadeira prudência aquela que não é inocente, e a pompa dos homens alheios à justiça e à verdade não pode durar, como explicou o rei David acerca do ímpio que viu elevado às alturas dos cedros da famosa montanha, concluindo:

Custodi innocentiam et vide aequitatem,
quoniam sunt reliquiae homini pacifico
["Guarda a integridade e considera o que é justo,
pois há posteridade para o homem pacífico." Psalmi, 36, 35-37]

Assim ama a paz quem dissimula com o honesto fim de que falo, suportando, calando, esperando, e, à medida que age conforme ao que lhe sucede, goza de certo modo também das coisas que não tem, ao passo que os violentos não sabem gozar das que têm, pois, ao sair de si mesmos, não percebem o caminho que conduz ao precipício. Os que têm verdadeiro conhecimento da história poderão se recordar do termo a que são levados os homens que gostam de medir suas decisões com muita vaidade, e, do que vai acontecendo, pode-se ver todos os dias a vantagem de proceder a passos tardos, lentos, quando a estrada é repleta de estorvos. A partir dessa consideração passei a tratar de tal assunto [...].


                 VIII. O que é a dissimulação

Depois que concluí o quanto convém dissimular, direi mais claramente seu significado. A dissimulação é a habilidade de não fazer ver as coisas como são. Simula-se aquilo que não é, dissimula-se aquilo que é. Disse Virgílio de Enéas:

Spem vultu simulat, premit altum corde dolorem. 
["No rosto simula a esperança, sufoca no coração a dor profunda". Eneida, livro I, 209] 

Este verso contém a simulação da esperança e a dissimulação da dor. Aquela não existia em Enéas, e desta estava o peito repleto; mas não queria manifestar o sentido de seus anseios: recordava por isso aos companheiros terem sofrido os mais graves males, e, ao citar a raiva de Cila, o estrondo dos escolhos e as pedras dos Ciclopes, valeu-se disso como que para enterrar entre aqueles monstros e entre aquelas ruínas passadas todas as desventuras que já os cansavam, e com o dulcíssimo meminisse invabit ("será belo recordar") conclui:

Per varios casus, per tot discrimina rerum
tendimus in Latium, sedes ubi fata quietas
ostendunt; illic fas regna resurgere Troiae.
Durate, et vosmet rebus servate secundis. 
["Em meio a males variados, em meio a tantos perigos
inclinamo-nos ao Lácio, onde os destinos mostram
moradas seguras: lá deve de fato ressurgir Tróia soberana.
Resisti, e conservai-vos para a boa fortuna." Eneida, livro I, 204-207]

Mas de todo modo o ânimo estava ferido e demasiado dolente, pois talia voce refert curisque ingentibus aeger ["tais palavras remetem a grande angústia e perturbação"]. Vê-se nestes versos a arte de esconder a crueldade da fortuna, e primeiro foi expresso por Homero como Ulisses dissimulava a dor enquanto sob outra aparência dava novas de si mesmo a sua Penélope, da qual disse:

Hac autem (iam) audiente fluebant lachrymae, liquefiebat autem
[corpus
sicut autem nix liquefit in altis montibus,
quam Eurus liquefecit, postquam Zephyrus defusus est
liquefacta autem igitur hac, fluvii implentur fluentes:
sic huius liquefiebant pulchrae genae lachrymantis
flentis suum virum assidentem. At Ulysses
animo quidem lugentem suam miserabatur uxorem.
Oculi autem tanquam cornua stabant vel ferrum.
Tacite in palpebris dolo autem hic lachrymas occultabat.
["E ela ouvindo, escorriam as lágrimas, deslizando em seu rosto
como a neve que escorre nos altos montes,
liquefeita por Euro, e depois espalhada por Zéfiro;
que em correntezas encheu os rios:
assim escorriam por seu belo semblante ao chorar,
ao chorar o esposo, que estava ao lado sentado. Ulisses
no coração tinha piedade de sua mulher gemente,
mas seus olhos estavam firmes como o chifre ou o ferro.
Imóveis entre as pálpebras; a arte ocultava as lágrimas." 
Odisseia, XIX, 204-212]

Eis a prudência com que Ulisses pôs freio às lágrimas, quando era a hora de escondê-las; e a comparação das lágrimas de Penélope com a neve liquefeita dá-me ocasião de acrescentar o que vêm a ser o úmido e o seco, no dizer de Aristóteles: humidum est quod suo ipsius termino contineri non potest; facile autem termino continetur alieno. Siccum est quod facile suo, difficulter autem termino terminatur alieno. ["O úmido é o que é indelimitável por limite próprio; sendo de outro modo bem delimitável. Ao passo que o seco é o que é facilmente delimitável pelo próprio limite; mas que de outro modo é mal delimitável".] Do que se pode aprender que o dissimular liga-se ao seco porque se atém ao próprio limite, e tais são os olhos de Ulisses, semelhantes, no momento de dor, à firmeza do chifre e do ferro, ao passo que os de Penélope estavam úmidos e não tinham limite prescrito, conforme os que eram vertidos na alma de Ulisses mantendo os cílios enxutos; e a isto parece corresponder a sentença de Heráclito: Lux sicca, anima sapientissima. ["Luz seca, alma sapientíssima.] 


                     X. Do deleite que há em dissimular

Honesta e útil é a dissimulação, e, sobretudo, repleta de prazer, pois se a vitória é sempre aprazível e, como disse Ludovico Ariosto,

Fu il vincer sempre mai lodabil cosa,
vincasi per fortuna o per ingegno.
["Vencer foi sempre a mais louvável coisa
vença-se pelo destino ou pelo engenho". Orlando furioso, XV, I, 1-2]

é claro que vencer apenas pela força do engenho dá-se com maior vivacidade, e muito mais ao vencer a si mesmo, que é a mais gloriosa vitória que se possa referir. Isto ocorre ao dissimular, em que, pela razão superados os sentidos, somos tomados de total tranquilidade; e ainda que se sinta não pouca dor quando se cala aquilo que se gostaria de dizer ou se deixa de fazer o que vem representado pelo afeto, não obstante, segue-se então uma imensa alegria pelo uso da sobriedade nas palavras e nos feitos. A esta satisfação consequente há de se volver o pensamento que deseja viver em repouso; e quem quiser bem se aperceber disso para seus interesses, observe sobretudo as faltas dos outros, e assim bem conheça que é nosso o quanto está em nós mesmos. Não digo que não se há de fiar ao peito do amigo os segredos, mas que seja verdadeiramente amigo; e é digno de grande consideração que, no epigrama de Marcial em que fala consigo mesmo da vida feliz, ao enumerar para este fim dezessete coisas, faça com que esteja no meio a prudens simplicitas, ao dizer:

Vitam quae faciunt beatiorem,
incundissime Martilais, haec sunt:
res non parta labore, sed relicta;
non ingratus ager, focus perennis;
lis nunquam, toga rara, mens quieta;
vires ingenuae, salubre corpus,
prudens simplicitas, pares amici,
convictus facilis, sine arte mensa;
nox non ebria, sed soluta curis;
non tistis torus, attamen pudicus;
somnus qui faciat breves tenebras;
quod sis esse velis nihilque malis,
summum nec metuas diem nec optes.
["São estas, diletíssimo Marcial,
as coisas que tornam a vida mais feliz:
posses obtidas não com trabalho, mas herdadas;
um campo rentável, um lar perene;
nenhum litígio, poucas reuniões; mente tranquila;
força elegante, corpo saudável,
prudente simplicidade, amigos iguais,
convidados amáveis, simplicidade à mesa;
serão sem embriaguez e livre de cuidados;
no leito uma moça alegre, e todavia pudica;
um sono que torne breves as trevas;
estar contente consigo, a nada maldizer,
não temer nem desejar último dia da vida." Epigramas, livro X, 47]

A prudente candura da alma é portanto o centro da tranquilidade. Hoc opus, hic labor ["Esse é o trabalho, essa é a fadiga". Eneida, livro VI, 129].


                       XII. Do dissimular consigo mesmo

Parece-me que a ordem deste artifício toca primeiro à própria pessoa; mas requer-se extrema prudência quando o homem tem de se esconder de si mesmo, e isto por não mais do que um breve intervalo e, com licença do nosce te ipsum ["conhece-te a ti mesmo"], para ter uma certa recreação passeando praticamente fora de si próprio. Primeiro, portanto, cada um deve procurar não só ter novas de si e das suas coisas, mas notícia plena, e habitar não na superfície das opiniões, que muitas vezes é falaciosa, mas nas profundezas de seus pensamentos; ter a medida de seu talento e a verdadeira definição daquilo que vale, sendo espantoso que todos tentem saber o preço das suas coisas e que poucos tenham cuidado ou curiosidade de entender o verdadeiro valor do próprio ser. Ora, pressuposto que se tenha feito o possível para conhecer a verdade, convém certos dias que aquele que é miserável se esqueça da própria desventura e procure viver ao menos com alguma imagem satisfatória, de modo que não tenha sempre presente o objeto de suas misérias. Quando isto for bem usado, é um engano que tem honestidade, posto que é um moderado esquecimento que serve de repouso aos infelizes; e, ainda que seja escassa e perigosa consolação, não se pode passar sem isto para respirar; e será como um sono dos pensamentos cansados, mantendo um pouco fechados os olhos da cognição da própria fortuna, para melhor abri-los após este breve restabelecimento: digo breve porque facilmente se transformaria em letargia, se por demais se praticasse esta negligência. 

ACCETTO, Torquato. Da dissimulação honesta. Trad. Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Clássicos)

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