sábado, 27 de junho de 2015

Uma nota de dorida lembrança e constatação sobre o amor

          Carlota, a vida é um tecido de equívocos. Foi preciso que morresses para eu saber que te amava e que éramos felizes, na monotonia dos nossos dias. Nessa monotonia, formada de coisas simples e permanentes, encobria-se a felicidade.
          A sede de coisas novas leva-nos a desconhecer nosso próprio bem. Fugindo ao que me parecia medíocre, perdi-me num mundo de aparências enganosas.
        Agora, a solidão fez de mim sua presa. Que terrível e opressiva solidão, Carlota! Ao entrar no quarto deserto, tento iludir-me, imaginando que te vou encontrar e que sendo a vida um sonho, tua morte foi um sonho dentro de um sonho. Na verdade, depois que a morte confiscou tua presença física, existes mais viva aos meus olhos, iluminados por uma luz nova. Antigamente, estavas comigo e, contudo, vendo-te, não te via. Agora te encontro por toda parte, descubro-te em todas as coisas, sei a cor dos teus cabelos, o modelado do teu rosto, sinto a pressão carinhosa dos teus braços que me envolviam na obscuridade.
         Mas a lucidez com que te vejo e te sinto dentro de mim arrasta-me a esperanças insensatas. Deixo de acender a lâmpada de cabeceira. Quem sabe estás no leito? Talvez ouça uma palavra que profiras sonhando, talvez ressones de manso. Quando, no quarto ao lado, tua mãe acalenta o menino, às vezes, estremunhado, creio que é a tua voz que entoa baixinho as cantigas. No entanto, depressa se dissipa a embriaguez desses momentos, Carlota, e a solidão faz pesar sobre o viúvo sua fria mão de ferro.
           Que saudade, agora, da vida que vivemos, das discretas emoções que sentimos juntos! À dorida lembranças, a todo instante me vêm as palavras que trocávamos cada dia, as longas caminhadas ao crepúsculo. Ou aqueles serões silenciosos em que eu escrevia e tu bordavas, de quando em quando me interrompendo para contar qualquer coisa acerca dos meninos, em cuja alma ias penetrando aos poucos, através de pequenas descobertas diárias.
          A cegueira e o destino me fizeram malbaratar os últimos tempos de tua companhia. E em abomináveis momentos cheguei a pensar que se morresses...
           Que desgraçado egoísmo, que miséria! Eu teria horror a mim mesmo, se não me consolasse a ideia de que o sentimento impuro nasce como a erva daninha no coração de todo ser humano e que só no pensamento amadurecido se pode apurar nossa culpa.
           Não nos abismos, mas no altiplano da consciência é que há de fazer-se a devassa final. Que podemos contra esses abismos? Evitá-los e repeli-los, mas nunca extingui-los.
          Carlota, perdoa-me os meus desvarios. Deus permitiu que, sendo tu viva ainda, eu tivesse podido voltar ao teu afeto e começar minha reabilitação. Para castigo meu, talvez, os dias de novo se tornaram doces, em tua companhia, quando já estavas para me deixar... Ó Carlota, se fosse possível ter-te novamente.
[...]
          Não aproveitei Carlota, e a vida nada mais tem para me dar. Resta-me uma existência suplementar, uma forma humilde de viver, que é viver só para os outros.
[...]
          Monsenhor Matias, velho amigo nosso, que me amparou nos sombrios meses que se seguiram à morte de Carlota, diz-me que essa vida humilde é precisamente a vida plena, e que só atingimos a felicidade quando conseguimos estender a todos os seres o pequeno amor egoístico que dedicamos àqueles que nos são próximos.
         Monsenhor Matias exige-me, não o débil amor que dedicamos à humanidade, em forma abstrata, que de nenhum modo solve nossos compromissos para com os homens e para com o Eterno, mas o amor militante, o amor de São Francisco de Assis. Acha que nos podemos tornar capazes dele, tal como adquirimos a fé, por um ato de vontade, através de exercícios constantes.
[...]
         Ser-me-ia possível a reeducação de mim mesmo nesta altura da vida?
 
ANJOS, Cyro dos. Abdias. São Paulo: Globo, 2008. pp. 179-183.

2 comentários:

Márcia disse...

Oi filha,
Estava vendo se vc tinha postado sobre "A Menina do Sobrado" e me deparei com esse texto lindo. Me fez lembrar, novamente, a frase da música do Tio Dércio: E o simples resolve tudo...".

Abraço gigante
Mamãe

Bruna Caixeta disse...

Oi, mãe!

Eu ainda devo mesmo postar algo sobre "A menina do sobrado" - o livro pede.

E, de fato, o trecho de "Abdias" associa-se com a frase do tio Dércio. Neles, a ideia da atenção ao simples impera.

Obrigada pelo comentário e a visita!

Um abração cheio de carinho.