sábado, 4 de abril de 2015

Correspondência de Cyro dos Anjos e Drummond (breve seleção)

 
 
 
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CARTA 11 (DRUMMOND) - Belo Horizonte, 22 de abril de 1932
 
Velho Cyro:
Aqui cheguei, perfeitamente íntegro, e com um baú de saudades de Montes Claros. Fiquei querendo um grande bem à sua terra, que é mesmo muito boa, de uma bondade inteligente e fina. É exato que tenho viajado pouquíssimo e que portanto não posso comparar impressões, mas a que me ficou de seu sertão é de uma qualidade especial, não se equipara às outras. Vocês resolveram o problema da perfeita sociabilidade, num clima que talvez convide pouco a ela. E a forma de hospitalidade que vocês cultivam é dessas que, deixando o visitante inteiramente à vontade, não lhe fazem sentir o peso das gentilezas, que do contrário o esmagaria. Não voltei esmagado porque vocês [são] cordiais e discretos.
          O que lamentei foi ter seguido para Montes Claros com a minha incurável timidez, que me torna quase feroz a olhos pouco experientes. Eu devia tê-la jogado fora em Bocaiuva. Como não fiz isso, devo ter causado a impressão de um indivíduo ausente das festas, quando talvez eu fosse o que mais se integrava nelas, sentindo um vasto e silencioso prazer tomando, por exemplo, aquela cerveja sob as árvores do Melo (você não sabe o que perdeu, casando-se na véspera desse acontecimento ou antes, deixando casar-se uma semana antes para poder participar dele). Mas aos que me tiverem achado besta, você dirá que essa minha maneira de ser não exclui uma larga dose de simpatia humana, e que essa vai toda para os excelentes amigos de Montes Claros.
         Mando-lhe uma entrevista concedida ao Diário da Tarde. Mando-lhe também - em vários e terríveis embrulhos - os exemplares de meu livro, que V. terá a paciência de distribuir entre os companheiros daí, assinalados nas dedicatórias. Terei omitido algum? É bem possível, e nesse caso requeiro os seus subsídios, para imediata reparação.
        - Vim encontrar o PSN já organizado e os elementos recalcitrantes já em doce harmonia como os próceres. O caso do ministro da Justiça é que continua sem solução. Parece que a dificuldade não está em Minas topar a parada dos tenentes; com o seu largo estômago, Minas topa tudo. A dificuldade está em escolher o ministro, havendo tantos patriotas que se dispõem a esse sacrifício.
         Da Montanha não tenho notícias, a não ser que continua em atividade, sob um silêncio de morte. E eu não sou iniciado.
        Desconfio que esta epístola já está muito longa para um cidadão recém-casado e em plena fase de lirismo doméstico. Vou deixá-lo em paz. Não antes de pedir-lhe que me recomende ao seu pai, de quem trouxe uma grave e doce impressão, e a sua irmã Alice, cujas receitas constituem um capítulo particularmente amável de minha viagem a Montes Claros.
        Para V. e Lilita mandamos o nosso abraço afetuoso, na esperança de vê-los algum dia nestas quatro paredes da rua Silva Jardim, onde os esperamos com amizade. Adeus, old Cyro
Do
Carlos
 
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CARTA 18 (CYRO) - Montes Claros, 15 de agosto de 1932
 
Carlos amigo,
Desde algum tempo venho pretendendo escrever-lhe, mas este sertão acaba esmagando a gente. Da intenção à ação há uma distância enorme, incompreensível. Acredito que existe por aqui algum gérmen cuja especialidade é o retardamento de todas as funções do espírito e do corpo.
       Vivo cheio de remorsos por causa de uma preguiça, que, aliás, não sei se vem mesmo de mim, ou do exterior: o certo é que, malgrado os meus ímpetos de reação, vou-me modelando à feição de todos daqui e me torno moroso em tudo. Para ler, para escrever, para trabalhar e até para pensar, parece que a gente faz um esforço muito maior do que aí, e dir-se-ia que a pressão atmosférica é muito mais esmagadora no sertão. Para desculpar-me, perante mim, dessa moleza, costumo invocar motivos meteorológicos, ou então conformar-me com a pasmaceira, imaginando que a vida é curta e que não vale vivê-la com intensidade. Mas esses argumentos servem apenas para o momento, e depois volta o remorso.
        No quintal deste velho sobrado, que você ficou conhecendo, há uma porção de plantas e uma quantidade regular de formigas: eis o que me distrai nas horas de "desalento". Adubo as plantas e mato as formigas. Infelizmente isso também não constitui uma solução, embora as formigas se multipliquem sempre.
        Creio que o que me castiga, no fundo, é o desejo de ir morar aí, e o receio de ficar muito distanciado do meio em que vivi. Estou dentro daquela situação que sugerem uns versos seus, que peço licença para lembrar (pois tenho a impressão de que você não gosta muito de alusões à queima-roupa aos seus poemas) e que lembro truncados: "Na roça, saudades do elevador, e no elevador, a saudade da roça...".
         Lilita está de franco acordo com esse desejo e pensamos, quando as coisas estiverem melhores, examinar a possibilidade de viver aí num canto qualquer do Bairro dos Funcionários. Quando acabará a revolução? Senti uma tristeza infinita quando tive notícia do levante em São Paulo, que me parece criminoso, por vários motivos. Sem examinar as pretensas razões políticas do movimento, que não me interessam, o que me impressiona, profundamente, são as consequências de uma revolução, quando o país está ainda pagando tributo da revolução da há dois anos. Parece que esses chefes rebeldes não tiveram olhos para ver a penosa situação em que o povo se encontra. O próprio roceiro, que sempre viveu com o estômago mais ou menos tranquilo acerca das provisões de boca, vive agora miseravelmente, e a fome não existe só no Nordeste. O que plantou, e colheu bem, come, mas não se veste, e o que colheu mal está nu e lutando com a fome. Mesmo que houvesse razões de sobra, no capítulo político para revoluções, essa revolução seria criminosa, pois vem agravar a penúria da grande massa. Ainda se Constituição fosse substância alimentícia...
       Acompanhei, pelos jornais, sua excursão ao "front". Você deve estar cumulado de trabalho, e, acredito, estará estafado quando acabar o barulho. Eu e Lilita nos lembramos de convidar a você, d. Dolores e Maria Julieta para virem descansar aqui, por algum tempo. O sobrado é grande e silencioso. Podemos também fazer passeios à roça. O convite é de todo coração e pedimos a você que estude o assunto e resolva conceder-se umas férias que bem merece. Aqui em casa há alojamento de sobra para todos.
        Com muitas lembranças para todos os amigos daí, um abraço do
Cyro
 
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CARTA 29 (DRUMMOND) - Rio de Janeiro, 22 de julho de 1936
 
Meu caro Cyro:
Desde que cheguei daí estou para lhe escrever pedindo notícias do seu "caso" pessoal, que muito me incomodou. Mas não o fiz ainda porque, continuando no Rio o governador, suponho não se ter modificado a situação que você me expôs. Como o governador demora, estou naturalmente desejoso de saber se alguma circunstância nova se produzia, alterando o estado de coisas. Ponho um grande e afetuoso interesse na solução do caso, em que aliás você se houve com uma correção e uma simplicidade exemplares.
        Eu vou mal. Voltei bouleversé dessa curta viagem de 3 dias ao País das Recordações. Trouxe, entre outras verificações, a de que estou ficando velho. É prova disso o estado de extrema sensibilidade em que me deixou o contato com alguns amigos, alguns lugares e uma certa pessoa. Nunca Belo Horizonte me deixou uma impressão assim: a princípio de transbordamento jovial; depois, de inquietação e perplexidade. O coração e o espírito trabalharam muito e voltaram fatigados. De par com isso, senti saudades absurdas da infância (que aparentemente não vinham ao caso), senti uma enorme necessidade de volver às origens mais obscuras e concluí, de tudo isso, que estou ficando velho. Chamo velhice a um estado de abandono de todo o material e experiência crítica acumulado entre os 20 e 30 anos, período que para nós foi de análise do mundo, de ceticismo, de dissolução das verdades, e principais verdades. Agora transposta a fronteira dos trinta, começa um trabalho diferente. Em mim, pelo menos, está sendo assim! As recordações de infância, principalmente, que eram quase ocultas na minha vida emotiva, são hoje violentas e numerosas. E o passado próximo, que considero tão perdido como o tempo, igualmente me perturba a um ponto que você nem pode avaliar como é doloroso, embora seja evidente o prazer que eu sinto em recompô-lo. Eis aí, meu caro Cyro: não há mais ironia nem penetração das coisas por uma crítica incessante. Estou cheio de imagens e evocações. recomeço a acreditar no primado dos sentimentos e a submeter-me a eles, sem discutir. Será talvez um estado passageiro, mas é a aventura presente de minha vida, e eu a vivo com sinceridade. 
        Como vai nossa amiga? Ela tem sido tema de intermináveis meditações. Tenho desejo e receio de escrever-lhe para contar tudo isso. O estado de espírito que acabei de descrever a você não é, porém, adequado a uma correspondência benigna. Na dúvida, abstenho-me. No fundo, somos todos umas bestas.
        Conclua o seu livro e venha ao Rio, como prometido. Lembranças ao doce Emílio e ao sábio Gui. Paz para sua casa e abraços do Carlos.
 
P. S. Os jornais daí deram-me uma notícia enternecedora e que agravou a minha supradita nostalgia das fontes! O festival chez Henriqueta Lisboa. Como é melancólica e deliciosa, meu Cyro, esta reabertura do salão Vivacqua, 16 anos depois! Em 1920, como agora, recitavam-se os poemas do velho Alphonsus. Naquele tempo, vagia no limbo literário. Eu, já taludo, incendiava casas e profanava cemitérios. Havia o Romeu de Avelar (que hoje escreve na Folha de Minas, segundo acabo de verificar também, com assombro e delícia. Como vê tudo passou e voltou). Podemos estabelecer um ciclo de 15 anos para a lei do retorno literário. Ciao e abraços.
C. 
 
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CARTA 56 (CYRO) - Belo Horizonte, 4 de novembro de 1944
 
Prezado Carlos,
Muitíssimo obrigado pelo exemplar, que me mandou, do seu Confissões de Minas.
       É um livro admirável, que você nos estava devendo há muito tempo, caro poeta. Não ignoro os sentimentos que inspiraram as palavras do prefácio, mas, em defesa da obra, não posso deixar de divergir, cordialmente, de você, quando a considera um "depoimento negativo" da época.
       Embora tenham sido grandes as transformações por que você passou, nos diferentes períodos em que o livro foi escrito, com natural reflexo na sua posição estética, não me parece que devam ser tratadas assim as páginas de Confissões de Minas
       Permita-me que lhe diga, à queima-roupa, que não acredito se encontrem páginas mais belas na língua portuguesa.
       Não aludo, é claro, somente às qualidades formais de sua prosa. Quero referir-me principalmente ao que nela encontramos em pensamento e poesia (ou "poesia e verdade", como eu ia escrevendo...). Atrás de cada palavra, há o mesmo homem terrivelmente lúcido que ironiza as coisas; como, entretanto, nos comunica sua ternura, desajeitada, seu lirismo, tudo o que há de itabirano, patético, irremediável no seu mundo!
       Não suponha, Carlos, que esta divergência, em face das Confissões de Minas, provenha de ponto de partida diferente, na estimação dos problemas essenciais de nosso tempo.
       Não nos vemos há muito, mas creia que hoje me sinto mais próximo de você do que há quatro ou cinco anos, e talvez o compreenda melhor do que há dez anos, quando trocávamos confidências sentimentais.
       É que a matéria do seu primeiro livro de prosa, pela sua própria natureza, não podia, a meu ver, ser tratada senão como foi, sub especie aeternitatis: você cogitou especialmente de homens, quando não de paisagens sentimentais.
       Se, contudo, houvesse um pecado no livro - acho que a um poeta que, como você, tem cumprido tão fielmente sua missão, realizando obra corajosa e sincera, poderia bem ser permitido o pequeno adultério de escrever algumas páginas fora do tempo (mas dentro do homem), não acha?
       Desculpe a um velho amigo se entra, um pouco estouvadamente, em domínios acaso vedados.
Com afetuoso abraço
do
Cyro
 
P.S. Creio que dentro de uns dois meses vou enviar-lhe o Abdias, que talvez resgate alguns pecados do Amanuense.
 
 
 
Cyro & Drummond: correspondência de Cyro dos Anjos e Carlos Drummond de Andrade. Wander Melo Miranda e Roberto Said (org.). São Paulo: Globo, 2012.

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