domingo, 26 de abril de 2015

As meninas de Lewis Carroll

            O autor de Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll, também foi fotógrafo e epistológrafo, dedicando esses dois ofícios  às meninas. 
           Abaixo deixo uma seleção de três de suas cartas e algumas de suas lindas fotografias, reunidas no livro Meninas (Cartas e Fotografias), por Mário Avelar. Introduzindo-as, transcrevo ainda a bela e elucidativa apresentação às cartas de Carroll escrita por Miguel Esteves Cardoso e também presente nesta obra.
 
 
  
Só para ti
 
            Uma carta é escrita só para uma pessoa. Demora muito mais tempo a escrever e enviar do que a receber e ler. Enquanto numa conversa o tempo que leva a falar é igual ao que leva a ouvir, escrever uma carta é uma dádiva. E fica.
           Quando uma carta é escrita a alguém que não pode responder - como uma criança - a dádiva é maior ainda. As cartas de Lewis Carroll são como prendas. Não sei se as devíamos ler. Ao publicá-las, o tempo de leitura é multiplicado pelo número de leitores e ultrapassa-se o tempo original de escrita, tirando-lhes o carácter de dádiva.
           Lewis Carroll era um grande escritor que escolheu gastar muito tempo a escrever a meninas, de maneira que elas pudessem compreender. Enquanto os romances foram escritos para pessoas de todas as idades, estas cartas são nitidamente dirigidas a não ser lidas por mais ninguém. O destino natural delas - como aconteceu às cartas que escreveu a Alice Liddell - era a fogueira ou o esquecimento. Também não sei se deveriam sobreviver.
         "Só" deve ser a palavra mais bonita de todas. Uma carta é só para uma pessoa e é, só por si, uma coisa só e um sinal de solidão. Destas cartas quem se sente mais só é quem as escreve. "Esta carta é só para ti" é apenas uma maneira mais simpática de dizer "Esta carta é só de 'mim'".
         Há quem veja na solidão de Carroll um amor doentio por crianças. Estas cartas são a prova que essa visão é que é doentia. Lewis Carroll era um professor de lógica que estava apaixonado por todas as meninas do mundo. Porque será tão difícil entender essa paixão sem recorrer à sexualidade?
          Carroll gostava de meninas como quem gosta de gatos ou de comboios- mas mais, porque as meninas são maiores. São pessoas. Carroll trata-as com dignidade. Nem o olhar mais perverso seria capaz de detectar qualquer desejo oculto - ou sequer ambiguidade.
         Enquanto as fotografias podem revelar alguma tristeza - uma tristeza de distância, de impossibilidade de contato - as cartas são saudáveis e bem-humoradas, monótonas até. Não sei, de fato, se deveriam ser publicadas. Mas se não fossem publicadas seria pior - por causa do que as pessoas imaginariam.
          Nada é mais incompreensível que a simplicidade. É preciso conhecer os jardins dos colégios de Oxford, no Verão, na segunda metade do século XIX, as cadeiras, de lógica e de matemática quando eram mais irmãs; e as relações entre famílias, entre professores e as pessoas da cidade, para começar a compreender a paixão de Lewis Carroll. O ambiente era feliz. Nada tinha de repressivo. Carroll gozava de enorme liberdade intelectual. A obra dele é a obra dum homem contente. Estas cartas são exatamente como são. Nada há a pôr ou a tirar - é muito simples.
        A solidão é uma coisa simples. Escrever a quem não responder; falar a quem não percebe; olhar como não se pode ser olhado: estes são os atos dum homem só. Mas a solidão não tem necessariamente que ser triste. Foi por Carroll ser um homem simples e correto que pôde viver a solidão dele dum modo tão aberto e feliz.
         Estas cartas são dádivas. Mas foram dadas com uma enorme alegria. Devíamos lê-las com a mesma simplicidade com que forma escritas.
 
Miguel Esteves Cardoso
 
 
 
  

 
PARA GERTRUDE CHATAWAY
Christ Church, Oxford (9 de Dezembro de 1875)
 
Minha querida Gertrude,
 
      Assim não pode ser, sabe: enviar todas as vezes mais um beijo pelo correio. O envelope fica tão pesado e... caríssimo. Quando o carteiro trouxe a última carta, estava com um ar muito sério. "Duas libras, Senhor!" Disse. "Peso extra, Senhor!". (Sabe, acho que ele, às vezes, me engana. Frequentemente, obriga-me a pagar duas libras quando acho que deveriam ser apenas dois dinheiros). "Oh, por favor, Senhor Carteiro!". Disse, descendo graciosamente e apoiando-me no meu joelho (Quem me dera que você visse a minha figura, ali, ajoelhando à frente do Carteiro - era uma coisa bonita de se ver.) "Perdoe-me só desta vez! É apenas uma carta de uma menina!"
       "Apenas uma carta de uma menina!" Rosnou. "De que é que são feitas as meninas?" "Açúcar e especiarias", comecei a dizer, "e tudo isso é bo..." mas ele interrompeu-me. "Não! Não é isso que eu quero dizer. O que eu quero dizer é: acha bem que as meninas enviem cartas tão pesadas?" "Não, não acho muito bem", disse com tristeza.
         "Veja lá se não recebe mais cartas destas", exclamou, "pelo menos, desta menina em particular. Conheço-te bastante bem e ela costuma portar-se muito mal!". Isso não é uma menina má, pois não? Contudo, prometi-lhe que daqui para o futuro enviaríamos poucas cartas um ao outro. "Só duas mil quatrocentas e setenta, mais cartas menos carta", disse. "Oh!" Retorquiu ele. "Uma quantidade tão pequena como essa é insignificante. O que eu tinha dito, é que não deviam enviar muitas". Por isso, já vê, agora temos que as contar sempre, e quando chegarmos às duas mil quatrocentas e setenta, temos que deixar de escrever, a não ser que o carteiro nos autorize. 
        Às vezes gostava de estar outra vez na praia em Sandown, e você?
 
       Este seu amigo,
          Lewis Carroll  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PARA MARY MACDONALD
 
Christ Church, Oxford (13 de Março de 1869)
 
Muito bem! Você é mesmo uma menina muito arrogante! Depois de me ter deixado estas semanas todas à espera de uma resposta, você escreve calmamente acerca de outra coisa qualquer como se nada tivesse acontecido! Escrevi (repare, Minha Senhora, que eu utilizei o verbo no passado: não é provável que volte a escrever sobre isso) no passado dia 26 de Janeiro, enviando-lhe uma cópia da edição alemã de Alice. Bem, os dias foram passando, e as noites também (tanto quanto me lembro, uma entre cada dois dias, ou mais ou menos), e nem sinal de resposta. E as semanas passaram, e os meses também, e eu envelheci, e emagreci, e fiquei cada vez mais triste, e NEM SINAL de resposta. E então os meus amigos disseram: "O teu cabelo está cada vez mais branco, e tu és só pele e osso", e outros comentários simpáticos no gênero, e ... é melhor não prosseguir, é demasiado terrível para relatar, exceto que, durante esses anos e anos de espera e ansiedade (todos eles decorridos desde o passado dia 26 de Janeiro; como vê, o tempo passa muito depressa em Oxford), NEM SINAL de resposta daquela pessoa com coração empedernido! E então ela calmamente escreve e diz: "Oh, venha ter comigo para irmos ver a corrida!" E eu respondo com um gemido: "Pois, pois, a corrida, a corrida desta raça humana que vive sem tempo para conviver; desta raça cheia de ingratidão; e em toda esta raça, ninguém é mais ingrato, mais, mais ... minha caneta entope, e não consigo dizer mais nada!
 
P.S. Tenho muita pena mas não estarei cá nessa altura, caso contrário teria imenso gosto de ir, se ao menos tivesse a oportunidade de dizer "Monstro de ingratidão! Fora daqui!"
 
 
 
 
 
 
 
 
PARA EDITH BLAKEMORE
 
Lushington Road, nº 7, Eastbourne (16 de Agosto de 1883)
 
Minha querida Edith,
 
      Ele não entrara na sala e não conseguira voltar e sair porque o pobre idiota não ia abrir a janela pela qual entrara e, em contrapartida, tentava sair por outra que por acaso estava fechada. Ah, é verdade! Durante este tempo todo esqueci-me de dizer o que era! Bem, era um pardal: e havia muitos mais, mais velhos, do lado de fora, na árvore, aguardando-o ansiosos, e interrogando-se onde estaria ele. Assim, quando estendi a mão para tentar apanhá-lo, ele não tentou fugir: aconchegou-se e deixou que eu pegasse nele. Terá certamente dito para si próprio: "Ora aqui está uma criatura grande e sábia que tudo conhece acerca destas janelas horríveis, e que sabe como voar através delas. É melhor deixá-lo ajudar-me." Enquanto o transportava para a outra janela, espreitei para ver como é que ele estava, mas ele era tímido e tentou esconder a cara. Muito provavelmente, ainda não tinha tido muita experiência de vida em sociedade. Primeiro abri a janela e depois a mão, mas ele não partiu: estava agarrado ao meu polegar e parecia perguntar: "Mas você não quer certamente dizer que eu tenho de me ir embora? E para onde eu quiser?" E então, de repente, compreendeu que estava livre e, qual seta, voou direto à árvore. Mas o mais curioso foi depois a conversa entre os pássaros. Aglomeraram-se todos à sua volta, e desataram a falar ao mesmo tempo. Creio que o devem ter obrigado a contar as suas aventuras mas eu não consegui ouvir a sua vozinha estridente no meio daquela algazarra. Nenhum deles parava de fazer perguntas e não me parece que tenham ouvido uma palavra que seja das suas aventuras: como é que eles podiam? Quando ele acabou, todos eles explicaram o que fariam se aquilo tivesse acontecido com eles; mas explicaram todos ao mesmo tempo, portanto não penso que isso tenha servido para alguma coisa. E depois (adivinhei tudo isto pelas suas vozes), deram bons conselhos ao jovem pardal. Creio que foram os pássaros velhos que o fizeram, pois tinham umas vozes muito profundas; mas também neste caso estragaram tudo ao falarem ao mesmo tempo. Esta foi a última coisa que ouvi: o mais novo não voltou a falar: deve ter ido para a cama enquanto eles estavam todos entretidos a dar conselhos.
        Deixe-me ver. Era sobre isto que eu lhe pretendia escrever? Não, não era; por isso, se faz favor, desleia tudo. Afinal o que eu quero mesmo falar é de presentes de aniversário, os presentes que você tanto gosta de me oferecer. Como estou a ver que não há maneira de a fazer parar, quero dizer-lhe algumas coisas que me seriam verdadeiramente úteis para a próxima vez que pensar dar-me alguma coisa. Bom, em primeiro lugar, prefiro qualquer coisa que seja feita para mim por uma criança, a outras que sejam comparadas. Não tenho recebido muitas mas adoro quando aparecem. Bom, malinhas em tecido castanho são sempre úteis: quadradas com dez ou quinze centímetros de lado, são bons tamanhos; com cordão duplo para se poder puxar para os dois lados ao mesmo tempo - assim ficam fechadas em segurança Ou, se prefere fazer coisas em lã, uma proteção para a chaleira era muito bem-vinda. Tenho duas, mas já estão muito gastas. Receio que isto pareça pedir demasiado se o digo é porque você gosta tanto de me dar presentes! Por isso, já lhe disse coisas que podem servir para os próximos 3 ou 4 aniversários. Mas se alguma vez se lembrar de fazer uma coisa para mim, por favor, não se esqueça de pôr "E.B", ou então, "Edith", num cantinho, para que eu nunca me esqueça de quem foi que me deu.
        Gostava de a ver um dia na praia! Quase todas as crianças que eu conhecia já desapareceram, e agora tenho de fato poucas amigas; e não é fácil fazer novas amizades; além disso, elas podem afinal ser horríveis, e não simpáticas. Às vezes, as crianças são-no.
       Espero que o seu Pai já esteja melhor. Transmita-lhe, assim como à sua Mãe, e à sua Irmã, os meus sinceros agradecimentos.
       Desculpe esta minha pequena nota mas, deve compreender, quando se tem apenas dois minutos para escrever, envelope e tudo, temos que ser breves; não acha?
 
Este seu amigo,
C.L. Dodgson 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
    CARROLL, Lewis. Meninas (Cartas e Fotografias). Lisboa: Assírio & Alvim, 1994. 

2 comentários:

Eve disse...

Só gostaria de deixar registrado oficialmente que acho a introdução do livro ótima.
=)

Bruna Caixeta disse...

Oi, tia Vê!

Obrigada por vir fazer a oficialização! Está registrada!

Eu também gostei muito da introdução. Entre tantas considerações de valor, achei de uma significação tão imensa o que Miguel Esteves disse sobre a simplicidade. Ele afirma: "Nada é mais incompreensível que a simplicidade".

A frase dele me deixou a pensar: a cada vez que o homem sofistica sua vida (na ilusão de torná-la mais confortável, fácil e aprazível), inclusive, estendendo a sofisticação para as suas relações pessoais, ele esquece da simplicidade e a retira de sua vida e relações, a ponto de vir achar anormal uma simples predileção por meninas, ou o mesmo: uma predileção simples por meninas - tal qual a de nosso querido Carroll, tão censurado por isso. A simplicidade chegou ao ponto de ser tão incompreensível a esses nobilíssimos seres humanos, que é confundida facilmente com a loucura ou a pedofilia. Que fato preocupante, tia Vê, fato preocupante...

Um abraço.