domingo, 27 de abril de 2014

Paciência

A Paciência é a arte de sofrer sem perder a compostura - mas nada tem a ver com a aceitação acrítica do mundo. Pelo contrário: é uma espécie de força final, que nos impele a seguir adiante mesmo quando tudo parece conspirar contra nós. É a virtude que nos salva quando o mundo começa a ficar sem sentido, quando todas as outras parecem perder a razão de ser.

      Havia um homem na terra de Uz, e o nome dele era Jó. Sob todos os parâmetros da época, era um bom sujeito. Havia enriquecido sem desonestidades e era generoso com suas vastas riquezas. Com os servos, era bondoso e cordial. Os vizinhos o tinham em altíssima conta e lhe pediam conselhos. E temos todos os motivos para acreditar que fosse um pai amoroso e dedicado para seus sete filhos e três filhas.
      Em outras palavras, era um homem cheio de virtudes - o que, em um mundo justo, seria a garantia de uma vida feliz. Mas nenhuma história se torna memorável se houver nela apenas felicidade. Se nada de ruim houvesse acontecido com Jó, certamente não estaríamos falando dele hoje. O fato é que, um dia, Satanás foi ter uma conversa com Deus - e o tema da conversa não era outro senão o nosso prudente, sábio e comedido amigo. É bom lembrar que, na época em que essa história foi escrita, Satanás não era o espírito do mal absoluto, mas uma espécie de (e aí vamos a um trocadilho ambíguo) advogado do diabo: sua função era lançar provações contra a humanidade, para testar sua fé em Deus. O Criador e o Acusador dos homens tiveram então um diálogo que selou o destino de Jó.  Foi mais ou menos assim: "Esse Jó parece muito correto, mas até eu seria um poço de virtudes se fosse tão rico e sortudo. Tire o que ele tem, e vejamos no que dá", disse o Diabo. "Tudo bem. Mas não o mate", respondeu Deus (o Deus do Velho Testamento tinha um forte virtude literária: era sucinto).
        E então vieram as desgraças. Que não foram poucas; pois, quando poucas, são bobagem, diz o provérbio. Primeiro, as riquezas de Jó foram surrupiadas: bandoleiros saquearam seus rebanhos e mataram seus servos. Depois, sua felicidade familiar foi aniquilada: um furacão se ergueu das areias do deserto e matou seus filhos e filhas. Como era de se esperar nessas circunstâncias, Jó perdeu a saúde: ficou coberto de úlceras, da cabeça até a sola dos pés. Tornou-se um mendigo e passou a viver atirado em um canto, sentado sobre um monte de cinzas e coçando a pele com um caco de pedra. A minuciosa prática das virtudes, que havia pautado sua vida até então, não o havia salvado de seu destino. Como entender tanta injustiça? A esposa de Jó, compreensivelmente amargurada, lhe deu então um dos conselhos mais brutais e sinceros na história da literatura: "Amaldiçoa a Deus, e morre". Mas Jó não amaldiçoou a Deus. E também não morreu, nem no sentido literal, nem no figurado - o que, para o assunto deste texto, é o mais importante. Jó tinha muito o que pensar e dizer sobre o próprio sofrimento. E, por tê-lo dito e pensado, tornou-se um símbolo, em vez de ser apenas mais uma vítima.
         Nos séculos seguintes, Jó se tornaria o modelo da virtude da paciência - tanto que a expressão "paciência de Jó" nos acompanha até hoje. Mas a história bíblica tem muitas interpretações possíveis, e seus meandros demonstram que a paciência é uma virtude tão difícil de definir quanto de praticar. Se entendermos a paciência como "sofrer sem reclamações", então Jó não foi nada paciente. Ele reclamou tanto, mas tanto, que o Livro de Jó é até hoje um dos melhores compêndios sobre a revolta humana contra a aparente arbitrariedade da vida. "Pereça o dia em que nasci!", Jó exclamou. "Que esse dia se transforme em trevas! As flechas do Todo-poderoso me atingem; os terrores de Deus se armam contra mim". Jó se recusou a morrer, em todos os sentidos - mas isso não significa que tenha encarado a sua dor com passividade e apatia. A paciência virtuosa não é a aceitação acrítica do mundo, mas uma espécie de força final, uma tábua de salvação da mente, a recusa em desistir mesmo quando o universo parece conspirar contra nós. "Ainda que Deus me mate, defenderei diante dele os meus caminhos", disse Jó. "E esperarei todos os dias do meu combate, até que venha a mudança". A desgraça e o absurdo da vida podem levar à renúncia do pensamento e ao silêncio absoluto da mente: o desespero existencial, que já abateu muitos bons soldados. Mas no meio dessa guerra sem quartel, a paciência é uma espécie de teimosia do espírito humano: a insistência em não perder seu centro e em acreditar na dignidade da razão. 
           Em certo sentido, a paciência é a última das virtudes. Não porque seja a menos importante - mas porque ela nos salva quando todas as outras parecem ter nos abandonado. No limite da experiência humana - quando o universo parece absurdo e a humanidade, maligna - é fácil relegar a ética ao departamento das intenções frustradas. Se o mundo é injusto, avaro e grosseiro, por que deveria eu - logo eu! - ser correto e cordial? Por que continuar o combate, quando nem sabemos se a luta vale a pena? "Porque devemos", responde o filósofo André Comte-Sponville em Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. "Porque seria indigno de nós fazer o contrário. E pela beleza do gesto - uma beleza que não é apenas estética, mas moral".
         A paciência é esse ato de respirar fundo à beira do evidente abismo, essa filosófica tomada de fôlego: é o fio de voz da razão, que permanece audível e nos guia em meio ao ruído. A etimologia, como sempre, ajuda a decifrar os meandros filosóficos: paciência vem do latim patere, "suportar" ou "sofrer". É a arte de suportar tristezas sem perder a compostura. "A paciência é a virtude pela qual o ser humano tolera a desgraça e o mal com a mente firme - pois a mente infirme, no momento da desgraça, pode renunciar ao que é bom junto ao que é ruim", escreveu o filósofo Santo Agostinho no ensaio Sobre a Paciência, no século 5. Até certo ponto, a paciência é uma espécie de tiro no escuro cósmico: uma aposta metafísica na existência de um sentido final para as dores do mundo. Esperar pela manifestação desse sentido, pelo clarão que tornará a vida legível - isso é o que fez Jó, sentado sobre o seu monte de cinzas. No caso dele, o sentido das coisas finalmente veio: o teste passou, Deus o ergueu dos escombros e ele foi - para satisfazer um clichê tão antigo quanto a própria humanidade - feliz pelo resto de seus dias. Mas não podemos nos fiar na recompensa de Jó. Para ficarmos nos limites da lógica - e a ética, sem lógica, é moralismo vazio -, temos que cogitar a hipótese: e se as dores do mundo, no final das contas, não fizerem sentido nenhum? Para isso a filosofia surpreendentemente, a filosofia da paciência também tem resposta. Mesmo que não haja sentido, é mais proveitoso agir como se houvesse; o desespero pode ser uma conclusão razoável diante das trapaças da existência, mas é tão razoável quanto inútil. Diante de um sofrimento incontornável, o desespero grita: vamos sofrer mais. Já a paciência sussurra: não vamos sofrer nada além do estritamente necessário.
           A linguagem e a rotina às vezes amenizam o sentido de uma palavra até tornar seu sentido original mal e mal perceptível - assim como a água, no devido tempo, pode transformar uma montanha em uma pedrinha. No uso atual e cotidiano, a paciência - que já foi considerada uma das virtudes capitais - se transformou em um vago utensílio para quem tem de esperar um ônibus, enfrentar uma reunião de condomínio ou lidar com alguma das mínimas e inúmeras torturas do dia a dia. Mas às vezes existe uma espécie de sabedoria pragmática na banalização das coisas: a paciência, enfim, não serve apenas para quem sofreu como Jó, mas para todos os que vivem ou viveram humanamente neste mundo. Isso fica mais claro quando comparamos a paciência com a coragem - sua irmã bombástica e hiperbólica. Para o filósofo São Tomás de Aquino, a coragem é a virtude que nos ensina a lidar com o medo, enquanto a paciência nos conduz em meio ao mal-estar generalizado da existência. "O medo nos impele a fugir, e a coragem impede a nossa fuga. Mas, se chamamos um homem de paciente, não é porque enfrentou um perigo de morte, mas porque se comportou de forma digna ao sofrer coisas que o ferem aqui e agora, sem deixar que a tristeza o domine", escreveu São Tomás na Suma Teológica, no século 13.
            Num certo sentido, a paciência é uma combinação de coragem com simplicidade: nem todos podemos ser heróis, mas todos podemos ser pacientes. Outra virtude que precisa estar sempre aliada à paciência é a moderação. Quando virtuosa, a paciência se assemelha à coragem e é o contrário do desespero. Mas, quando se curva aos golpes do mundo, em vez de suportá-los com dignidade, a paciência se transforma em conformismo - que é apenas o próprio desespero em um formato mais confortável. Jó, o mais paciente dos homens, jamais se conformou com coisa alguma: pelo contrário, ele inquiriu pacientemente as engrenagens de seu destino, até encontrar uma resposta. E, se a resposta não vier do universo, que venha de nós mesmos. Ela está nas músicas, nos poemas, nos romances; em coisas muito banais, em coisas muito sérias; em certos momentos que se perdem no tempo e no esquecimento, mas continuam misteriosamente conosco para sempre; na visão de um rosto querido, ou em sua lembrança. E, mesmo atingidos pelas flechas e pelos terrores do universo, não seremos desertados por esse sentido possível. Desde que sejamos pacientes.

"O homem impaciente não tolera a dor, mas tampouco se liberta dela - tudo o que ele faz é incorrer em um sofrimento ainda maior. Já o homem paciente prefere suportar o mal sem cometê-lo, em vez de cometê-lo sem suportá-lo; e assim sua paciência torna mais leve o que a impaciência tornaria mais pesado". Santo Agostinho

Fonte: Essa matéria foi reproduzida da coluna "Virtudes possíveis" da revista Vida Simples do mês de maio de 2014, edição 144. Foi escrita pelo jornalista José Francisco Botelho.

2 comentários:

Márcia disse...

No meu entendimento, a verdadeira paciência é aquela que é fruto de uma compreensão, ou pelo menos da vontade de compreender a situação objetivamente. No mais é apenas tolerância à custa puramente de uma força de vontade que é muita frágil e pode explodir ou implodir a qualquer momento.

Bruna Caixeta disse...

Mami,

suas pertinentes reflexões completaram o texto do José Francisco Botelho. Gostei bastante das suas palavras. Obrigada por elas; por deixar esse comentário.

Um daqueles abraços apertados e demorados.