sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Oratório de Santa Maria Egipcíaca

PREFÁCIO

A autora

        A autora confessa-se uma enamorada do Flos Sanctorum. Há temperamentos insatisfeitos com as simples grandezas terrenas, que, em geral, se detêm na fronteira do heroísmo. Para esses, não parece impossível que o esforço humano consiga ultrapassar esse horizonte, e atinja o mundo longínquo da santidade. São esses temperamentos que facilmente seguem a rota da lenda, invertendo-a, vivendo-a ou pelo menos caminhando por ela. É muito difícil, em certos casos, separar-se o histórico do lendário. O Flos Sanctorum é uma região de transfigurados, aprazível de percorrer, com seus inumeráveis exemplos de esperança. 
         Falo da autora em primeiro lugar porque um dos seus sonhos de adolescente foi escrever um Oratório do Apóstolo São Paulo. Mas São Paulo é tão veementemente histórico que a menina que estudou música pelo desejo de dar forma ao seu sonho, diante das responsabilidades que tinha a enfrentar, deteve-se, com moderação e humildade.
             O Pequeno oratório de Santa Clara e o Romance de Santa Cecília escritos muito mais tarde a dar notícia de seus passeios pelo Flos Sanctorum - mas cerca de dez anos, quando se ocupava do teatro de bonecos, a autora programara uma série de esboços dramáticos, de que pouco a pouco se vem desincumbindo, todos eles referentes a episódios do Flos Sanctorum.

O poema

               A história de Santa Maria Egipcíaca chama a atenção dos leitores de vidas de santos quase sempre pelo episódio da travessia do rio, pela versão de ter a santa pago a passagem com seu corpo, movida pelo ardente desejo de ir a Jerusalém. É, na verdade, um episódio de impressionante grandeza. Mas, em outra versão, Santa Maria Egipcíaca, instalada em Alexandria desde a adolescência, e levando vida impura (que um estudo da época e do lugar ajudaria a compreender), não teria feito esse ajuste por inspiração mística, mas, ao contrário, com o fim de tentar com a sua sedução os peregrinos que a Jerusalém se dirigiam para as festas da Santa Cruz.
           À autora, não é esse episódio - embora reconhecendo a força do imprevisto que ele encerra - o que mais impressiona. O que impressiona é a sua própria santidade. Sem martírio, sem milagres, sem coisas extraordinárias a não ser a sua levitação sobre as águas, o leão final que lhe abre a cova no deserto e a cobre de terra, Santa Maria Egipcíaca é a penitente. Seu problema é "interior", seu "martírio", seu "milagre" como sua glória decorrem nesse tempo oculto da alma, esse lugar oculto. A "voz" que no poema parece uma advertência divina pode ser o seu próprio instinto de santidade em luta com circunstâncias que lhe impõem um comportamento contraditório. E quando a pecadora Maria acorda energicamente para uma vida nova, acorda "por si mesma", por sentir seus passos pesados e sua voz indigna. (Claro que não queremos nem defender para ela uma posição de orgulho nem tratar do problema da Graça).
           Foi dentro dessa perspectiva, pois, que o poema se formou. Se ele por si não o deixa claro, a autora gostaria de acentuar aqui a sua intenção: o processo de transformação da pecadora. A clareza da sua consciência no Mal e no Bem. Sob o nítido céu do Egito, quase se vê desenhada como um triângulo essa vida singular, límpida e geométrica na sua edificação. Talvez mesmo o ápice desse triângulo não esteja no deserto, onde a penitência desliza em miragens de um passado que se desmorona com certa felicidade melancólica. Talvez o ápice esteja na Terra Santa, na irrecusável conversão. E não sei que elo íntimo associa esse instante de Maria Egipcíaca ao instante análogo na vida de Saulo em Damasco - mas talvez a autora confusamente o sentisse, ao cuidar da Santa, tendo um dia sonhado cuidar do Apóstolo.
      A autora reconhece não só sua inexperiência em composições dramáticas como, especialmente neste caso, a dificuldade em dar forma "exterior" a um drama tão íntimo e arcaico. Mas seu propósito não foi fazer história nem propriamente teatro - mas um poema que, perdida a forma narrativa, assume a forma representada, e pode, talvez, converter-se em espetáculo. Sobretudo porque a autora o sentiu "musicalmente", construído nessa harmonia do acontecimento - que lhe afigura exato como um teorema.
         Talvez a linguagem usada seja um pouco excessiva: quem sabe, porém, como falaria essa adolescente impetuosa que deixa a família para levar tão perigosa vida em Alexandria; e se propõe seduzir os peregrinos que vão à Terra Santa; e "sente" tão profunda vergonha diante de Deus que, antes dos quarenta anos, escolhe o deserto e o silêncio, e é enterrada por um leão? Nesse clima de exaltação talvez se possa admitir uma linguagem exaltada. A autora reconhece tudo isso e muito mais - e pede desculpas de não ter podido fazer melhor - como desejaria.
                                                                                                    Cecília Meireles 


[...]
MARIA EGIPCÍACA
Fala    Senhor, Senhor, Senhor, eu sou Maria,
            aquela do porto de Alexandria,
            que desde menina vivo dedicada 
            a amar quem passa pela cidade.
            Como posso cantar para a Eternidade,
            se a minha vida é só para breves instantes?
            E como poderei amar a Divindade,
            se apenas mortais têm sido os meus amantes?
            Senhor, eu não sou romeira nem peregrina, 
            eu sou a que fugiu de casa, quando era menina,
            a que era tão leve, tão bela e graciosa
            que nem a palmeira, que nem a brisa, que nem a rosa.
            Não posso mais levantar meu rosto para o rosto
            daqueles que deixei desesperados de desgosto,
            como o levantarei para tua Face, que é divina?
           Senhor, não posso dar um passo para frente!
           Sinto nos pés a força de uma severa corrente
           e não consigo acompanhar toda essa gente
           que canta seus hinos diante de Ti ajoelhada...
           Mas eu amei quando pude, amei por amar, mais nada.
           Deixe-me ir para trás, ao menos, para o deserto,
           aprender o que está errado e o que está certo,
           e voltarei, talvez, se conseguir um dia chegar perto
           de Ti, Senhor, e iluminada!

VOZ MÍSTICA
Canta  Vai para esse deserto que escolheste, penitente,
             e abre teu coração à luz Onipotente
            que desce em silêncio dos quatro horizontes.
            Banha-te nessas douradas fontes,
            e aquele grande fogo que consumia 
            tua vida em Alexandria,
            verás cair de teu corpo como um vestido encarnado,
            e estarás para sempre perfeita e livre do vil pecado!


                                    IV. Cenário do deserto

VOZ DESCRITIVA
Fala   E Maria levou uns cinquenta anos sozinha
          em penitência pelo deserto.
          Nada mais possuía, nada mais tinha
         além de seu velho corpo, pela cabeleira coberto.
         Um pobre corpo como no inverno a cepa da vinha.
         Os 4 Evangelhos sobre os 4 ventos
         vinham trazer-lhe seus ensinamentos.
         E nem comia nem bebia,
         Maria de Alexandria,
         nem acordava nem dormia,
         e sua vida estava suspensa
         entre o alto céu e a ânsia imensa,
         alimentada só por um celeste rossio.
         E às vezes caminhava por cima das águas do rio.

[...]
VOZ DESCRITIVA
Canta  Zósimo passava 
            pelo deserto
           quando viu um vulto que se aproximava.

[...]
MARIA EGIPCÍACA
Canta  Zósimo, grava na tua memória
            os quatro instantes da minha história:
            a menina enganada,
            a pecadora reclinada,
            a romeira subitamente esclarecida,
            e esta que morre e só na morte encontra a vida.
[...].


MEIRELES, Cecília. Oratório de Santa Maria Egipcíaca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, pp. 58-69.

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