quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Contos (4)

   O Jardim de Diânora

  Em Friul, região, embora fria, alegre por suas belas montanhas, numerosos rios e claras fontes, há uma cidade chamada Údine na qual viveu uma bela e nobre dama, Diânora, esposa de um ricaço de nome Gilberto, muito agradável e bonachão. E mereceu essa mulher, por seu valor, ser amada sumamente por um nobre e grande barão, Ansaldo Gradense, homem de qualidade e, por armas e cortesia, de todos conhecido.
  Ele, ferventemente amando-a, e fazendo tudo o que estivesse ao seu alcance para ser correspondido, solicitava-a amiúde por meio de mensagens, e era em vão que se afadigava. Como a dama desgostasse da insistência do cavalheiro, e vendo que, apesar de esquivar-se, ele não cessava nem de a amar nem de a solicitar, com um impossível pedido, pensou libertar-se dele. E a uma mulher que, muitas vezes, vinha da parte dele, falou um dia assim:
  - Boa mulher, por muitas vezes me afirmaste que Ansaldo me ama sobre todas as coisas e maravilhosos presentes ele me tem mandado que mal posso aceitá-los, pois jamais consentiria em amá-lo ou comprazer-lhe em troca deles. E se eu pudesse ter a certeza de que ele tanto me ama como dizes, é sem dúvida que eu o amaria, dispondo-me a fazer o que ele quisesse desde que ele faça o que eu pedir.
  - Que desejais - perguntou a boa mulher - que ele faça?
  - Eu quero - volveu a mulher- que no mês de janeiro vindouro, haja nesta cidade, um jardim cheio de ervas verdes, flores e árvores frondosas, de tal modo como se estivéssemos em maio. Desde que o não consiga, é favor que não me importune mais. Pois se ele me procurar mais, eu que, de meu marido e meus parentes até este momento venho escondendo tudo, queixando-me farei que me livrem de Ansaldo.
  O cavalheiro, ouvindo o que a dama pedia, embora lhe parecesse coisa quase impossível de realizar, e vendo que a mulher havia feito um pedido dessa ordem apenas para livrar-se dele, dispôs-se a tentar o que estivesse ao seu alcance. E andou procurando em muitas partes do mundo quem lhe pudesse dar ajuda ou conselho. Até que lhe veio um homem que, sendo bem pago, dispunha-se a realizar o desejado por meio de sortilégios.
  Combinou-se que grande importância lhe seria paga e Ansaldo esperou satisfeito o tempo aprazado, que, chegando, sendo o frio grandíssimo e todas as coisas cheias de neve e gelo, o valoroso homem, num prado vizinho da cidade fez tais artes, na noite que se seguia às calendas de janeiro que na manhã seguinte, segundo o testemunho de quantos o viram, aparecia um dos mais belos jardins da terra, com ervas, árvores e frutos de toda a espécie.
  Ansaldo, satisfeitíssimo, vendo-o, fez colher as mais belas frutas e as belas flores que havia e, ocultamente, mandou-as de presente à sua dama, convidando-a para ver o jardim por ela exigido a fim de que, por ele, pudesse compreender quanto a amava e recordar-se da promessa feita e firmada sob juramento e que como mulher leal deveria cumprir.
  A mulher, tendo visto as flores e os frutos, e tendo de muitos ouvido falar do maravilhoso jardim, começou a arrepender-se da promessa. Mas com o seu arrependimento, desejosa de ver coisas novas, com outras mulheres da cidade, dirigiu-se ao jardim; e, não sem maravilha, louvou-o assaz, e voltou extraordinariamente triste para casa, pensando naquilo a que era agora obrigada. Foi tal o sofrimento que, não podendo ocultá-lo, revelou-se-lhe na face e o marido, acabando por percebê-lo, quis saber a causa de tudo aquilo. A mulher, envergonhada, calou-se; por fim, coagida, revelou-lhe tudo, minuciosamente. Gilberto, ouvindo, muito a princípio se perturbou; depois, considerando a pura intenção de sua mulher, com melhor conselho, expulsa a ira, disse:
- Diânora, não é coisa de mulher honesta nem prudente atender a mensagens dessa natureza, nem fazer nenhum pacto, a qualquer título, sobre a própria castidade. As palavras recebidas pelo ouvido do coração têm mais força do que muitos estimam e quase tudo aos amantes se torna possível. Fizeste mal pois em primeiro ouvir e depois em pactuar. Mas como conheço a pureza de tuas intenções, para livrar-te da obrigação da promessa, concordarei em que faças o que ninguém te concederia; induz-me a isto sobretudo o medo do nigromante, pois, Ansaldo, se não cumprires a promessa, nos faria com certeza sofrer. Quero que vás a ele e, se puderes, conseguir que seja conservada a tua honestidade, libertando-te da promessa. E se não for possível, concede desta vez o corpo e não a alma.
  A mulher, ouvindo o marido, chorava e negava-se a atendê-lo. A Gilberto, embora a mulher resistisse, agradou muito que assim fosse. Chegada a manhã seguinte, ao raiar da aurora, sem muito ornar-se, com duas criadas à frente, e uma camareira ao lado, dirigiu-se a dama à casa de Ansaldo. Este, ouvindo que a mulher viera, admirou-se muito; e levantando-se, fez vir o nigromante e disse-lhe:
  - Quero que vejas o bem que a tua arte me fez conquistar.
  E foi a seu encontro, sem nenhum desordenado apetite, e com reverência, honestamente a recebeu, e num belo quarto, de grande lareira, entraram todos; e fazendo-a sentar-se, disse:
  - Senhora, eu vos peço, se o longo amor, que eu vos dedico, merece algum galardão, que me reveleis a verdadeira razão de teres vindo a uma hora destas e com tal companhia.
  A mulher timidamente, e quase com lágrimas nos olhos, disse:
  - Não vim aqui nem por amor nem pela fé jurada, mas por uma ordem de meu marido que teve mais respeito às fadigas de vosso desordenado amor que à sua honra e à minha, fazendo-me vir aqui. E por ordem sua, disponho-me desta vez a fazer o que desejais.
  Ansaldo que, a princípio muito se maravilhou de ouvir a mulher, muito mais agora começou a maravilhar-se. E comovido com a liberalidade de Gilberto começou a mudar o seu fervor em compaixão, e disse:
  - Senhora, não permita Deus, se é assim como dizeis, que eu desmanche a honra de quem teve compaixão de meu amor. E por isso, enquanto aqui estiverdes, tratar-vos-ei como se fôsseis minha irmã. E quando for de vosso gosto, livremente podereis partir e ao vosso marido dareis os agradecimentos que julgardes convenientes; quanto a mim tereis em mim sempre um irmão e um servidor.
  A mulher, ouvindo estas palavras, disse:
  - Nunca eu pude acreditar, atendendo a vossos costumes, que outra coisa devesse resultar de minha vinda até aqui. Por isso eu vos serei sempre obrigada.
 E despedindo-se, dignamente acompanhada, voltou a Gilberto, contando-lhe o que acontecera. Daí resultou estreitíssima e leal amizade entre ele e Ansaldo. 

BOCCACCIO, Giovanni. Histórias Galantes. Trad. Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Cultrix, 1959, pp. 39-42.

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