quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Contos (3)


Ulrica

"Hann tekr sverthit Gram ok   
legger i methal theira bert."*

*Ele pegou sua espada, Gram, e colocou entre eles dois o aço nu."

   Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha lembrança pessoal da realidade, o que é a mesma coisa. Os fatos aconteceram há muito pouco, mas sei que o hábito literário é também o hábito de intercalar traços circunstanciais e de acentuar as ênfases. Quero narrar meu encontro com Ulrica (não soube seu sobrenome e talvez nunca o saiba) na cidade de York. A crônica vai abarcar uma noite e uma manhã.
   Nada me custaria relatar que a vi pela primeira vez junto das Cinco Irmãs de York, aqueles vitrais puros de toda imagem que os iconoclastas de Cromwell respeitaram, mas o fato é que nos conhecemos na saleta da Northern Inn, que está do outro lado das muralhas. Éramos poucos e ela estava de costas. Alguém lhe ofereceu uma taça e ela recusou.
   - Sou feminista - disse. - Não quero remedar os homens. Não gosto nem do fumo nem do álcool deles.
   A frase pretendia ser engenhosa e imaginei que não era a primeira vez que a pronunciava. Soube depois que não combinava com ela, mas o que dizemos nem sempre se parece conosco.
   Contou que chegara tarde ao museu, mas que a deixaram entrar quando souberam que era norueguesa.
   Um dos presentes comentou:
   - Não é a primeira vez que os noruegueses entram em York.
  - É verdade - disse ela. - A Inglaterra foi nossa e a perdemos, se alguém puder ter ou perder alguma coisa.
   Foi então que olhei para ela. Uma linha de William Blake fala de moças de suave prata ou de furioso ouro, mas em Ulrica estavam o ouro e a suavidade. Era leve e alta, de traços afilados e olhos cinza. Menos que seu rosto me impressionou seu ar de tranquilo mistério. Sorria com facilidade e o sorriso parecia distanciá-la. Vestia-se de preto, o que é raro nas terras do Norte, que procuram alegrar com cores o ambiente apagado. Falava um inglês nítido e preciso e acentuava levemente os erres. Não sou observador; essas coisas fui descobrindo pouco a pouco.
  Fomos apresentados. Disse-lhe que era professor da Universidade dos Andes em Bogotá. Esclareci que era colombiano. 
   Perguntou-me de um modo pensativo:
   - O que é ser colombiano?
   - Não sei - respondi. - É um ato de fé.
   - Como ser norueguesa - assentiu.
   Nada mais posso recordar do que se disse naquela noite. No dia seguinte desci cedo à sala de jantar. Pela vidraça vi que tinha nevado; o planalto deserto se perdia na manhã. Não havia mais ninguém. Ulrica me convidou para a mesa dela. Disse-me que gostava de sair para caminhar sozinha. Lembrei-me de uma brincadeira de Schopenhauer e respondi:
    - Também eu. Podemos sair os dois juntos.
   Afastamo-nos da casa, sobre a neve recente. Não havia vivalma nos campos. Propus a ela que fôssemos a Thorgate, que fica rio abaixo, a algumas milhas. Sei que já estava apaixonado por Ulrica; não teria desejado nenhuma outra pessoa a meu lado.
   Ouvi de repente o longínquo uivo de um lobo. Nunca ouvi um lobo uivar, mas sei que era um lobo. Ulrica não se abalou. 
   Depois de algum tempo, disse como se pensasse em voz alta:
   - As poucas e pobres espadas que vi ontem em York Minster me comoveram mais que as grandes naves do museu de Oslo. 
   Nossos caminhos cruzavam-se. Ulrica, naquela tarde, prosseguiria a viagem para Londres; eu, para Edimburgo.
   - Em Oxford Street - disse - repetirei os passos de De Quincey, que procurava sua Anna perdida em meio à multidão de Londres.
   - De Quincey - respondi - deixou de procurá-la. Eu, ao longo do tempo, continuo a procurá-la.
   - Talvez - disse em voz baixa - a tenhas encontrado.
   Compreendi que uma coisa inesperada não estava proibida para mim e lhe beijei a boca e os olhos. Afastou-me com suave firmeza e declarou em seguida:
   - Serei sua na pousada de Thorgate. Peço-lhe que, por enquanto, não me toque. É melhor assim.
   Para um celibatário entrado em anos, uma oferenda de amor é dom que já não se espera. O milagre tem direito a impor condições. Pensei em minha mocidade em Popayan e numa moça do Texas, clara e esbelta como Ulrica, que me negara seu amor.
   Não incorri no erro de perguntar se gostava de mim. Compreendi que não era o primeiro e que não seria o último. Essa aventura, para mim talvez a última, seria uma de muitas para aquela resplandecente e resoluta discípula de Ibsen.
   Prosseguimos de mãos dadas.
   - Tudo isto é como um sonho - disse eu - e eu nunca sonho.
  - Como aquele rei - replicou Ulrica - que não sonhou até que um feiticeiro o fez dormir numa pocilga.
   Acrescentou em seguida:
   - Ouça bem. Um pássaro está prestes a cantar.
   Pouco depois ouvimos o canto.
   - Nestas terras - disse - acreditam que quem está para morrer pode prever o futuro.
   - E estou para morrer - disse ela.
   Olhei-a atônito.
   - Cortemos pelo bosque - apressei-a. - Chegaremos mais depressa a Thorgate.
   - O bosque é perigoso - replicou.
   Continuamos pelo planalto deserto.
   - Eu gostaria que este momento durasse para sempre - murmurei.
   - Sempre é uma palavra que não é permitida aos homens - afirmou Ulrica e, para atenuar a ênfase, pediu-me que repetisse meu nome, pois não ouvira bem.
   - Javier Otárola - disse.
   Ela quis repetir e não conseguiu. Eu também fracassei com o nome de Ulrikke.
   - Vou chamá-lo Sigurd - afirmou com um sorriso. 
   - Se sou Sigurd - repliquei -, você será Brynhild. 
   Retardara o passo.
   - Conhece a saga? - perguntei.
  - Naturalmente - disse. - A trágica história que os alemães estragaram com seus tardios Nibelungos.
   Não quis discutir e respondi:
   - Brynhild, você caminha como se desejasse que entre nós houvesse uma espada na cama.
   Estávamos de repente diante da pousada. Não me surpreendeu que se chamasse, como a outra, Northern Inn.
   Do alto da escadaria Ulrica gritou para mim:
   - Ouviu o lobo? Já não existem lobos na Inglaterra. Ande logo.
   Ao subir ao andar de cima, notei que as paredes estavam empapeladas à maneira de William Morris, num vermelho muito profundo, com frutos e pássaros entrelaçados. Ulrica entrou primeiro. O aposento escuro era baixo, com um teto de duas águas. A esperada cama duplicava-se vagamente num cristal, e o mogno polido me lembrou o espelho da Escritura. Ulrica já se despira. Chamou-me por meu verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve aumentava. Já não restavam móveis nem espelhos. Não havia espada alguma entre nós. Como a areia, escoava o tempo. Secular na sombra, o amor fluiu e possuí a imagem de Ulrica pela primeira e última vez.

BORGES, Jorge Luis. O livro de areia. Trad. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 17 - 21.   

4 comentários:

Manoel Almeida disse...

Romance e diálogos simplesmente fantásticos, Bruninha. Sabia que Ulrica e Javier Otárola era como Borges e sua mulher chamavam um ao outro?

Forte abraço.

Bruna Caixeta disse...

Manoel,

não conhecia este fato de que Borges chamava a Maria Kodama de Ulrica e ele era apelidado Javier. Bacana, em?! Isso me levou a imaginar que se tiver sido fato também que o casal tivesse diálogos e um romance semelhantes ao do conto "Ulrica", quão bela e, não pouco, literata, teria sido esta relação, não?!

Obrigada pela informação compartilhada, Manoel.

Um, também forte, abraço.

Lívio disse...

Bruna, o escritor que mais releio é Borges. Gosto muito dele; muito mesmo.

A erudição dele não esconde uma leveza e uma profunda imaginação.

Bruna Caixeta disse...

Lívio,

concordo demais com o que você, sábia e sucintamente disse sobre a erudição do Jorge Luis Borges. É isso mesmo.

E esta sua colocação sobre o escritor, me fez lembrar de outra também sua, que é assim: "Para despertar a imaginação? Nada que Borges não resolva." É fato.

Finalmente, para mim que sou uma leitora muito fascinada pelas histórias que um escritor(re)inventa com bastante criatividade, isto é, pela capacidade deles de contar boas histórias, a literatura de Borges muito me satisfaz. Estou gostando demais da experiência de lê-la.

Obrigada pela visita e pelo comentário, Lívio.

Um abração.