domingo, 19 de junho de 2011

Quimeras

Cada um com a sua Quimera 

   Sob um grande céu de cinza, numa grande planície poeirenta, sem caminhos, sem relva, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei vários homens que marchavam curvados.
   Trazia cada um deles às costas uma enorme Quimera, tão pesada como um saco de farinha ou de carvão, ou como o equipamento de um infante romano.
   Porém o monstruoso animal não era um peso inerte; ao contrário, envolvia o homem, e oprimia-o, com seus músculos elásticos e possantes; aferrava-se-lhe ao peito com as suas duas garras imensas; e sua cabeça fabulosa sobrelevava a cabeça do homem, tal um desses horríveis capacetes com que os antigos guerreiros procuravam agravar o terror do inimigo.
   Interroguei um daqueles viajantes, perguntei-lhe aonde eles iam assim. Respondeu-me que não sabia de nada, nem ele, nem os outros; mas que, evidentemente, iam a alguma parte, pois eram impelidos por uma necessidade invencível de caminhar.
   Curioso: nenhum deles se mostrava irritado contra o animal feroz que trazia pendente do pescoço e agarrado às costas; dir-se-ia considerá-lo parte integrante de si mesmo. Nenhuma daquelas fisionomias extenuadas e graves denotava o mínimo desespero; sob a tediosa cúpula do céu, os pés mergulhados na poeira de um solo tão desolado como o céu, eles marchavam com a aparência resignada dos que são condenados a esperar eternamente.
   E o cortejo passou a meu lado e afundou-se nos longes do horizonte, no ponto em que a redonda superfície do planeta se furta à curiosidade do olhar humano.
   E durante alguns momentos obstinei-me em querer compreender esse mistério; mas logo a irresistível Indiferença caiu sobre mim, e eu fiquei mais rudemente oprimido do que o estavam aqueles homens pelas suas esmagadoras Quimeras. 

BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. Trad. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p.27.  

6 comentários:

Ana Amélia disse...

Bru!

Que belo texto! Fazia mto tempo que eu não lia nada de Baudelaire! Obrigada pela oportunidade! Sabe, a indiferença é o pior sentimento ever na minha opinião... é estranho, indefinível... por isso tão perigoso.

Abraços carinhosos, Anita.

Bruna Caixeta disse...

Anita,

Acho o sentimento da indiferença, senão o pior (como você o considera), um dos piores.

O mais triste é quando a indiferença passa ser em relação à existência - o que talvez esteja "ilustrado" neste texto.

Vejo isso nos homens que o narrador observa. O comportamento deles em insistir em carregar um peso opressivo e caminhar por um lugar que não sabem onde dará traça uma imagem detalhada do que poderia ser o conceito de indiferença em relação à existência: a absoluta inércia, uma mistura de não querer dar importância a saber para onde ir, e portar a opressão da Quimera (mas sem se oprimir).

Por outro lado, há a Quimera das coisas também, ou seja, a sugestão à pesada qualidade enigmática destas, que também produz a mesma inércia (ou uma inércia mais rude), que pode impedir a busca de solução para as coisas - é a que o narrador manifesta observando o cortejo, por exemplo.

O curioso (e triste) disso tudo é que essa temática toda de não saber onde vai dar o caminho e da resignação é semelhante quadro comportamental até dos que não são indiferentes à vida (ou o são em alguns momentos).

Esta aí talvez um dos pesos do nosso saquinho chamado Fado.

Obrigada pela comentário, Anita.
Um abração carinhoso para você, minha companheira de conversas.

Lívio disse...

Bruna, acabei me lembrando da canção "Quimeras" da banda Zero:

Tantas vidas pra viver
Tentando se encontrar
Tantas coisas por fazer
Pra se purificar
Não consigo mais sonhar
Já me basta o que vivi
Sofrendo ao desejar
Quimeras que não consegui

Grande abraço.

Bruna Caixeta disse...

Lívio,

seus comentários intertextuais sempre têm um valor à parte!

Muito obrigada pela transcrição da canção "Quimeras" - que é tudo a ver com o conto do Baudelaire.

Grande abraço para você.

Ana Amélia disse...

Bru.. vc é genial! :)

Bjókas!

Bruna Caixeta disse...

Ô o exegero, Anita!

[Risos].

Abração.