segunda-feira, 27 de junho de 2011

Fragmentos (4)

Em Utopia, porém, cada um é um perfeito conhecedor do Direito, pela simples razão de que, como já afirmei, são muito poucas as leis, e suas interpretações mais evidentes são sempre admitidas como as mais justas e verdadeiras. Dizem os utopianos que a única finalidade de uma lei é lembrar às pessoas quais são os seus deveres; portanto, quanto mais complicada ela for, tanto menor será a sua eficácia, já que muito poucos serão capazes de compreendê-la. Por outro lado, uma lei cujo significado seja simples e óbvio explica-se naturalmente àqueles que vão em busca do seu entendimento. Do ponto de vista das pessoas simples, que formam o grupo mais numeroso de uma comunidade e que mais precisam de normas, que diferença faz se não existe nenhuma lei, ou se existem leis cujo entendimento e interpretação dependem de longos debates e confabulações? Afinal, a pessoa comum de mente obtusa está muito ocupada em ganhar o seu sustento e não dispõe nem do tempo nem da capacidade mental para captar essas profundezas, mesmo que estudasse a vida inteira.

MORE, Thomas. Utopia. Trad. Jefferson Luiz Camargo e Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2009,  pp.156-157. (Clássicos Cambridge de Filosofia Política).

8 comentários:

Lívio disse...

Bruna, esse breve livro é um livrão, não? E o trecho, uma aula de Direito.

A passagem até fez com que eu me lembrasse daquela parte de "As viagens de Gulliver" em que há uma guerra doida por causa de uma disputa sobre de que lado o ovo deveria ser quebrado.

A passagem de Swift não diz respeito, a rigor, ao Direito, mas à interpretação de um livro tido na história como sagrado. Contudo, vejo tanto no trecho de Swift quanto no de More a importância decisiva de se saber interpretar, antes de tudo, o que dizem as letras no papel.

Abraço.

Bruna Caixeta disse...

Oi, Lívio!

Andei conhecendo o More este ano. Desde então, sempre volto à sua obra, sobretudo à "Utopia". Presentemente este é o meu livro de cabeceira - o qual é mesmo um livrão.

Este episódio de "As viagens de Gulliver" - que você sabiamente lembrou - é muito sério. Não me lembrava desta passagem sobre de que lado o ovo deveria ser quebrado, referindo-se à religião. Esta última, que também é tida como lei para muitas seitas, também passa por esses percalços de interpretação. Curioso é que, no caso da religião, o obscurecimento do sentido das palavras rendeu grandes tratados de filosofia - que, ironicamente, não deixaram de trazer certas "brumas" paras as questões. Mesmo assim, em todo caso, alguns tratados são essenciais (não só para se pensar assuntos que envolvem religião).

Lívio, só para lembrar: o Swift foi um dos muitos leitores de More; por sinal, um sábio leitor.

Obrigada pelo comentário!

Abração.

Marina Mundim disse...

Bruninha.. muito legal este fragmento. Agora que eu tbm sou uma estudante de direitos, tenho tido dúvidas como "que diferença faz se não existe nenhuma lei, ou se existem leis cujo entendimento e interpretação dependem de longos debates e confabulações?" acho que os nossos legisladores deveriam ter no mínimo um curso superior e por que não Letras, para saberem se expressar ..

Mas somos nós que elegemos palhaçoes e não Doutores, neh?!

sobre o seu comentário no meu blog - muito obrigada! *-*
e imaginaa.. claro que não! eu por acaso te pedi autorização pra colocar o seu nos meus favoritos?! hehe

beijos

Unknown disse...

Mais uns meses de convivência e eu vou aderir totalmente a Utopia!
Muito bom o fragmento, principalmente a última frase...


(p.s: Eu deveria estar lendo sobre Secagem de Grãos nesse momento... kkkkk)

Bruna Caixeta disse...

Oi, Marina!

Seja bem-vinda!

Penso é que a "Utopia" poderia tornar-se uma das referências bibliográficas obrigatórias para vocês que estudam Direito. Acho-a indispensável para quem está lidando com a reflexão de questões ligada à vida pública.

Outro autor interessante que tem reflexões válidas para a organização social é o grande amigo do Morus, o Erasmo de Rotterdam. Tem gente que acha até que os amigos combinaram de fazer um, o Elogio à Sabedoria (que corresponderia à "Utopia" do Morus), e o outro o Elogio da Loucura (do Erasmo). De forma mais engraçada (e nem um pouco menos política), Erasmo também faz com que pensamos sobre a nossa forma de governo e em nossos governantes.

Um grande abraço.
E sucesso aí no "novo" curso superior.

Bruna Caixeta disse...

Dannyzita,

você sempre muito engraçada!

É mesmo, mais algum tempo você escutando meus falatórios (diários) sobre utopia vai acabar largando esse papo de secagem de grãos para ler Morus (em todas as línguas, inclusive, a começar pelo Latim). [Risos].

Obrigada pela visita!

Um abração.

Manoel Almeida disse...

Oportuno resgate, Bruna. Ao menos em minha época os alunos tinham de ler "A Arte da Guerra" em vez de santo Thomas Morus, cuja Utopia era possível porque habitada por pessoas em estágio evolutivo superior - como ele próprio.

Grande abraço.

Bruna Caixeta disse...

Oi, Manoel!

Sabe que acho que o Morus tinha uma inteligência raríssima. Certamente, como você disse, era uma pessoa num estágio evolutivo superior.

E você falando "santo Thomas Morus"... e não é que ele é mesmo reconhecido como santo? O São Thomas Morus. Mas pensando nesta decisão da Igreja de canonizá-lo, não sei se ele, em vida, iria gostar dessa "homenagem". Apesar da afeição que tinha pelo cristianismo, suas concepções iam bastante na contramão do cristianismo católico.

Obrigada por conferir, Manoel!

Abração.