terça-feira, 3 de maio de 2011

O príncipe



Creio que boa parte das leituras que se horrorizam com O Príncipe de Maquiavel são feitas de uma forma que o próprio escritor florentino julgou inadequada para compreensão do seu objeto de análise, a política. Isso quer dizer que esta obra ainda é muito estudada pela ótica dos princípios morais e/ou religiosos, sobretudo; não sendo a política tomada como um setor particular, um sistema com regimento distinto das leis que ordenam essas últimas esferas.

Em O príncipe, Maquiavel se propõe a analisar como as organizações políticas se fundam, persistem e decaem, sobretudo pelas ações dos homens que detêm o poder. Faz isso com objetivo de, entendendo as vicissitudes modernas (da Id. Moderna) por meio do atento estudo das antigas, chegar a um tratado político que proporcione ao príncipe - o que governa lucidamente -, a faculdade de poder, ou seja, a faculdade de conduzir a política segundo as próprias leis da política. E aqui se esclarece o que me parece a concepção de poder de Maquiavel: ela é uma representação do saber agir do governante, ao contrário de ser um displicente comportamento individual egoísta – sentido atribuído à palavra hoje, até pela metamorfose que o sistema político sofreu desde a instalação do modo de vida burguês: passou de um sistema com um compromisso coletivo para um sistema com um compromisso particular, egoísta. O poder maquiavélico é o do saber comportar-se como um sensato organizador cívico.

A diferença do seu tratado para os demais produzidos na mesma época do renascimento e em tempos anteriores - como os da fase do auge da Grécia e Roma -, está no fato de Maquiavel não adotar para a política as vias do que Anthony Grafton – autor da “Introdução” desta edição lida -, chamou de os princípios éticos gerais, que é a vinculação da natureza do homem e dos propósitos do governo na busca da vida virtuosa. Ao contrário, Maquiavel buscou o retrato da política tal como ela é: este jogo onde dificilmente se pode salvar o governo sem incorrer na infâmia de alguns vícios, como a crueldade, a dissimulação, a farsa, a infidelidade, a bestialidade, entre outros; assim como também quis mostrar um jogo que não se reduz às ações más, desde que os homens desta forma não o queiram.

Maquiavel vai entender a política como entende o homem, nada medida que o homem e a organização política (por depender da ação humana) são divididos e maleáveis pela fortuna e a virtude - aqui entendida na sua mais legítima etimologia, a da virtú (ou seja, a virilidade, a ação do homem sobre o destino, a sua capacidade de agir criativamente para se livrar, mesmo que seja pouco, do que é predeterminado), isso quer dizer que os dois podem ser bons ou maus, impelidos ou não pela fortuna. Se Maquiavel enxergou os seres humanos como seres genuinamente egoístas e ambiciosos, tal fato não vem sugerir que a opinião do florentino seja a de que eles deverão agir, ou agirão, somente segundo essas características. Existe a possibilidade do reversível na ação humana, esta sobre parte da fortuna. O homem e “o príncipe”, que, como definiu certa vez Carlos Berriel (professor de "História Literária" na Unicamp), é quem atua na política, razão e ação, podendo ser o exército, o partido e/ou o próprio homem, têm que saber aonde quer chegar; ou seja, precisa-se de um projeto, e o político hábil sabe onde vai dar a história. E é a meta, neste caso política, que exigirá do homem o exercício dos seus dois possíveis lados: o da virtude (agora entendida como o antônimo de vício) e o do vício, pois que na política, segundo Maquiavel, é impossível vencer só com um, já que somente virtuoso o homem não se manterá no poder, porque isso é algo impossível na ambivalente política desde a hipótese, e, se for somente cruel, rapidamente se perderá nos seus objetivos e será linchado pelo povo – grande e constante preocupação dos políticos, já que o povo pode, sobretudo na república, sistema apoiado por Maquiavel, funcionar como o termômetro das ações políticas, pois que eles é que manterão o executor político nesta incumbência, com a ação, com o poder. Dito isso, compreende-se que para o pensador político italiano, a política é um espaço, com tempo e circunstâncias variadas, para utilização de uma e/ou outra postura humana.

A grande contribuição deste escritor renascentista florentino pareceu-me estar, maiormente, em deslegitimar a política do moralismo, e, ao mesmo tempo, bem como com maestria - sem dar ares de grande renovador, não legá-la às licenciosidades do lado maldoso humano. Na sua genial prudência, afirma: “[...] é necessário a ele [ao príncipe] não se afastar do bem, se possível, mas saber entrar no mal, se necessário”. Maquiavel, com O príncipe, a um só tempo consegue limitar o campo de ação de algumas leis inadequadas para a política, sobretudo as exclusivistas moralistas de fundo religioso, e mostrar que “saber entrar no mal” não significa, como afirma o prefaciador (Fernando Henrique Cardoso, o ex-presidente do Brasil) da edição consultada para esta redação, “excluir a crença em valores, nem supõe o amoralismo na ação política”. Cada esfera com suas leis. A da política permite, a um só tempo, faltar com o moralismo, mas não abandonar de vez a moral. Elucidando ainda mais este argumento, fica adequado citar esta frase de Fernando Henrique Cardoso: “Este [o estadista] não pode cingir-se a respeitar valores absolutos, terá de se haver com a responsabilidade de seus atos, mais do que com os fins nos quais crê.” (grifo meu a fim de assinalar para quem deverá responder o estadista, segundo ainda a concepção de Maquiavel). 

Embora soubesse muito bem a substância da obra de um grande estadista, FHC, -aqui fica uma polêmica opinião pessoal-, quando em governo, não soube ser um bom executor do poder, antes de qualquer coisa, por ter negligenciado uma das partes mais importantes do sistema republicano: o povo. E não que eu queira com isso defender a primazia de um governo popular, ou afirmar que a república só dá certo por meio desta qualidade de governo, mas fato é que a satisfação do povo num regime republicano ainda é a garantia de um político no poder.

Por fim, o livro de Maquiavel pode ensinar duas coisas: a executar a política, e isso para quem mais está interessado em participar ativamente deste complexo sistema, bem pode ajudar a entendê-la – para qualquer pessoa que queira falar de política. Neste último caso, boa parte dos apontamentos sobre a postura dos políticos encontradas nos jornais precisariam ser revistas, já que discutir política não é se limitar, ou mesmo partir do campo do moralismo. Assim transmitiu Maquiavel.


Edição lida: 

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010. 

2 comentários:

Lívio disse...

Bruna, é um livro imprescindível.

Parabéns pelo seu comentário.

Bruna Caixeta disse...

Concordo, Lívio.

E obrigada pelas palavras.

Abraços.