sexta-feira, 25 de março de 2011

Juliano, o apóstata



O primeiro e maior interesse de Gore Vidal ao escrever o romance Juliano, acredito, esteve na discussão religiosa e, eventualmente, política sobre o século III em Roma (com implicações bastante atuais), ao invés de se preocupar em fazer uma biografia romanceada do imperador apóstata romano, ainda que ele mesmo tenha dito, no seu prefácio, ter sido esta última a intenção do livro. Mesmo que eu não tivesse gostado do romance (o que não aconteceu), simplesmente admiraria a ideia de Vidal de ter se valido da vida de uma personalidade incomum, como a de Juliano, para tocar em questões sutis sobre a religião católica e o paganismo grego. Foi uma grande estratégia literária.
Portanto, independentemente de Gore Vidal ter romanceado demais o retrato de Juliano (isso não ocorre, até pelos comentários críticos de Libânio e Prisco que alternam as memórias do imperador), e de o próprio Juliano ter sido ou não uma personalidade tão curiosa como atestam alguns, o que são discussões de segundo plano para o romance, o enredo nos leva a pensar como historicamente foi séria e cheia de implicações negativas a aliança da Igreja Católica com o princípio jurídico romano. E, antes que eu cause animosidade, advirto e esclareço que esta afirmação sobre as conseqüências negativas da aliança Igreja-Roma não deve soar como uma crítica ao cristianismo, enquanto corrente religiosa, mas como crítica aos princípios da outra corrente na qual se transformou após a união de conveniência entre a Igreja e Roma.
O resultado mais negativo da conveniência foi, segundo o próprio texto, a falência do exercício da religião pela religião, sem outros interesses (de ordem política e econômica, sobretudo) envolvidos; a falência do simples culto sincero do que os gregos conheciam como a ἀρετή (Areté), a Virtude, a qual estava muito associada à educação espiritual interior; à capacidade do próprio indivíduo, exclusivamente (lembremos da etimologia da palavra “indivíduo”) ir em busca da experiência religiosa; e não de transformá-la apenas em uma atividade social, ou em um meio de ascensão social, político e econômico. 
Parece discussão antiga, já banalizada, é, mas nunca fora do tempo, pois que sempre estará presente enquanto os indivíduos (cada uma das pessoas, por si só) não compreenderem a grande e séria diferença entre uma religião figurativa e uma efetiva. E é nesta discussão que Vidal insere a sua criação literária, o personagem Juliano. O imperador de Vidal queria instaurar o paganismo, porque acreditava ser ele a única religião verdadeira; assim parece ser fiel ao fato de Juliano Augusto ter tido esta mesma intenção. Mas, além deste fato histórico, de querer defendê-lo, o personagem de Vidal enfatiza uma questão: apenas a religião grega foi capaz de inaugurar a ideia, pelo menos no Ocidente, de que o homem precisa fazer uma descoberta individual no que se refere aos assuntos da divindade. Somente o homem, por ele mesmo, é capaz de ter um relacionamento com Deus.
Dessa forma, mais do que a crença no helenismo, mais do que a apologia ao paganismo, ao culto dos deuses gregos, o personagem defendeu a crença na descoberta individual, na religião interior, que foi fundada ocidentalmente por pensadores como Sócrates/Platão e, acrescentaria, com muito respeito pelas suas contribuições, Plotino (quem está longe de ter sido somente alguém que repetiu as ideias do seu mestre). Se Juliano, o imperador romano, tinha essa crença, não sabemos. Prisco, outro personagem do romance e também lendária figura histórica, numa certa altura de avaliação do seu amigo, se pergunta: “Jamais saberemos como era o verdadeiro Juliano: o rude gênio militar ou o encantador estudante louco por filosofia? Obviamente era ambos. (p. 379)”. Mas, ainda esta avaliação está dentro de um romance. Entretanto, a crença do personagem Juliano, criado por Vidal, assinala para essa reflexão (a da religião interior).
A opção por ressaltar esse grande aspecto do pensamento grego, também não é uma apologia ao paganismo, quando pensamos no escritor Gore Vidal e na pessoa quem escreve esta resenha. Temos consciência de a Grécia estar longe de ter sido uma cultura perfeita, inclusive no império de Juliano; de ela ter tido também seus momentos de interesses políticos vinculados à religião (como existiu no império de Constantino I) e de intolerância religiosa. Mas, algo que sempre foi forte a subsistir, e que nos foi transmitido do pensamento grego, foi essa ideia da descoberta interior. Um grande legado.
E algo que contam que o imperador Juliano fez, (acrescentaria: apesar de muitas medidas extremas como incendiar igrejas e ser absurdamente adverso ao cristianismo), foi ser mais tolerante quanto aos diferentes cultos religiosos. Vidal também mostra isso na figura de Máximo, o mestre de Juliano. E o diálogo entre eles, que acontece pouco antes de chegar o meio da história, é um dos mais interessantes e reveladores do livro, pois além de mostrar uma profunda crença no que debatíamos acima acerca da descoberta interior, tem lá seus laivos de ensino à tolerância religiosa. Diria ser a parte mais sensata do livro, estes dizeres: Ninguém pode dizer ao outro o que é verdadeiro. A verdade está em volta de nós. Mas cada um deve encontrar o seu caminho. Platão é parte da verdade. Homero também. E a história do Deus judaico, se ignoramos suas afirmativas arrogantes. A verdade está onde o homem divisa a divindade. A teurgia pode provocar esse despertar. A poesia também. Ou os próprios deuses, por vontade própria, podem abrir subitamente os nossos olhos. (p.85 e 86).
Antes dessa conclusão, Máximo (e sintomático que esta fala esteja com Máximo e não com Juliano) discute o seguinte:
A partir do Único, muitos... Como podem muitos ser negados? Serão todas as emoções iguais? Ou cada uma tem característica peculiares? E se cada raça tem suas qualidades, não serão elas dadas por um deus? E se não forem dadas por um deus, essas características não seriam mais bem simbolizadas por um deus nacional específico? No caso dos judeus, um patriarca mal-humorado e ciumento. No caso dos sírios efeminados e astutos, um deus como Apolo. Ou tomemos os germanos e os celtas, que são aguerridos e ferozes. Será por acaso que adoram Ares, o deus da guerra? [...] Alguns perguntam: “Nós criamos os deuses, ou eles nos criaram?” É um debate muito antigo. Seremos nós um sonho da divindade, ou cada um de nós um sonhador separado, evocando sua própria realidade? Embora não se tenha certeza, todos os nossos sentidos nos dizem que existe uma única criação, e que estamos contidos nela para sempre.” (p. 84)
De Homero a Platão e a Iâmblico, os verdadeiros deuses continuam a ser definidos em seus vários aspectos e poderes: multiplicidade contida pelo único, e tudo emanando da verdade. Ou como escreveu Plotino: “A alma, por sua natureza, ama a Deus e deseja unir-se a ele”. Enquanto existir a alma humana, Deus existirá. (p. 141).
Assim, o menos importante a se considerar e pugnar é o meio para se conseguir ter contato com Deus. E o mais importante, pessoalmente acredito, é fazê-lo por um esforço próprio, muito sincero.

Edição lida: VIDAL, Gore. Juliano. Trad. Aulyde Soares Rodrigues. São Paulo: Círculo do Livro, 1964.
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Gore Vidal concedeu uma entrevista ao jornalista Ricardo Setti (articulista da Veja), há muitos anos atrás. Ano passado, Setti resgatou esta entrevista e a colocou na sua coluna online. Quem tiver interesse em conferi-la, acesse aqui.
Vou confessar uma coisa, só para vocês, acho que talvez até um pouco cedo demais: gosto do Vidal como escritor (apesar de ter lido só o Juliano e estar com vontade de ler Origem), mas não como pessoa. Acho-o fatalista e afeito a polêmicas demais para discussões, quaiquer que sejam elas.
Bom, entrevistas servem, entre outras coisas, para gente conhecer um pouco não só do escritor, mas da sua pessoa.

5 comentários:

Lívio disse...

Bruna, não conheço o Vidal escritor, mas já li entrevistas com ele - e gostei de todas.

Como escritor, não sei como ele é, mas o acho um excelente entrevistado (risos).

Bruna Caixeta disse...

Lívio,

já eu acho que ele tem ótimas sacadas, mas não me simpatizei tanto com ele.

Valeu pelo comentário.

Marcia Maria disse...

Bruna, excelente resenha!
Eu sou um pouco suspeita pra falar desta obra pois sou muito fã dela; já li duas vezes há bastante tempo. O que mais ficou na minha lembrança é que o Juliano, apesar de todas as implicações que um imperador pode ter, na minha opinião, antes de mais nada foi um autêntico buscador da verdade, da verdade única e imutável, ele tentou, até onde conseguiu ser fiel a um profundo anseio pela verdadeira iluminação interior e era o que o impulsionava em todas as suas ações. De tantos livros que já li (e até que não foram poucos,Juliano é um dos personagens que mais me marcou.

Bruna Caixeta disse...

Mãe,
seu elogio para minha resenha é suspeito![Risos] Brincadeira. Obrigada por vir até aqui conferir o blogue.
Pois é, lembro deste livro na sua estante, mas foi um dos muitos que não li. Só agora conseguir fazer isso.
O Juliano, personagem, é mesmo um buscador da verdade, e só isso já bastaria para o tornar um personagem marcante. Concordo com você que ele assim seja. Só não sei se, de fato, o imperador Juliano teve esta mesma orientação.

Seja como for, o livro é excelente e cheio de reflexões curisosas sobre a religião, tanto no que diz respeito às suas questões históricas, como no que se refere ao seu sentido de busca interior.

Abraço afetuoso.

Unknown disse...

Livraço! Juliano é muito bom!!! Pra quem gosta de ler sobre história antiga, não tem como não ler Juliano!!!